O primeiro contato com o pai foi aos 45 anos. Esta é a história de uma moradora de Canudos do Vale que prefere não se identificar. Logo que nasceu, o registro de nascimento continha apenas o nome da mãe e a figura paterna foi ausente em grande parte da vida dela. Hoje, com 49 anos, sabe onde ele mora e os dois compartilham o sentimento familiar. Mesmo assim, o contato permanece distante.
Com uma realidade percebida há décadas, os números de pais ausentes na vida e nos registros das crianças cresce a cada ano. Desde 2020, em Lajeado, o número de pais ausentes aumentou em 1,2%. Na região, Taquari apresenta o maior crescimento: 4,7%. Entre os motivos percebidos por especialistas, está o desequilíbrio educacional e falta de responsabilidade familiar.
No caso da moradora de Canudos do Vale foi assim. Ela conta que os pais namoravam há cerca de dois anos quando descobriram a gravidez. Era um relacionamento sólido, que começou a passar por divergências ainda antes do bebê nascer.
“Naquele momento meu pai decidiu terminar o namoro e não assumir a gravidez. Então quando eu nasci, minha mãe me registrou somente no nome dela”, conta.
Antes de completar um ano de vida, um processo judicial para requerer a pensão alimentícia obrigou o pai a registrar a filha. A partir dali, a mãe recebeu o valor e a menina passou a ter o sobrenome nos registros. Por outro lado, a presença e acompanhamento não existiam.
“Minha mãe, assim como toda minha família materna, sempre me deu muito suporte físico e emocional para superar a falta de um pai”, diz.
Desde criança, ela sabia a verdade. “Eu lembro que aos seis anos, contava na escola que meu pai viajava muito e isso me deixava, de certa forma, mais confortável diante dos meus colegas”, recorda.
Na vida adulta
Apesar de todo o suporte na infância, alguns resquícios da ausência do pai foram percebidos depois de 40 anos, em terapia. Ela sabia que se quisesse curar as feridas, era necessário ir em busca dele.
Depois de dias de conversas por telefone, se encontraram. A conversa foi madura e resultou em novos contatos.
“Hoje nossa relação é distante, tenho amor de filha por ele, mas não tive convivência, não conheço ele de fato, então criar laços é mais difícil para mim”. Além disso, desde os quatro anos, a presença do padrasto supriu parte da falta do pai.
Obrigações jurídicas
A advogada especializada em direito da família, Marta Luisa Piccinini, explica que do ponto de vista jurídico, a afetividade está relacionada ao cuidado, à responsabilidade e ao princípio da solidariedade que deve existir entre os membros da família.
“Dessa forma, o afeto pode se tornar uma obrigação jurídica e ser fonte de responsabilidade civil”, reforça. Segundo ela, o abandono ou não reconhecimento da paternidade está ligado ao descumprimento dos deveres de cuidado e de convívio.
Os motivos para essa ausência são diversos, mas o direito ao reconhecimento de paternidade ou do estado de filiação é garantia constitucional, assegurado também no Estatuto da Criança e do Adoloescente e no Código Civil. Dessa forma, há a possibilidade de se tentar localizar os pais que “sumiram” ou que não “assumiram” seus filhos.
O reconhecimento da filiação pode se dar de forma espontânea, quando o pai comparece voluntariamente ao Registro Civil das Pessoas Naturais, ou ainda por escritura pública ou testamento. “Caso o reconhecimento não ocorra espontaneamente, a legislação garante o reconhecimento por meio de decisão judicial”, explica a advogada.
Desde 2017, também é possível fazer em cartório o reconhecimento de paternidade socioafetiva, quando os pais criam uma criança mediante uma relação de afeto, sem nenhum vínculo biológico.
Programa Pai Presente
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou, em 2015, o Programa Pai Presente, que facilita o reconhecimento de paternidade em todo o Brasil.
O programa é coordenado pelas Corregedorias de Justiças dos Tribunais de Justiça dos Estados da Federação, que fazem mutirões em locais como escolas e presídios para atendimento de mães, crianças e pais que pleiteiam o reconhecimento da paternidade e exames de DNA.
“Além das garantias legais ao reconhecimento da paternidade, também é dever do Estado oferecer a possibilidade da mãe, representando o filho, ou ainda o próprio filho após atingir a maioridade, buscar o reconhecimento por meio de uma ação judicial”, reforça Marta.
Ela acrescenta ainda, que a ação pode ser feita com um advogado particular ou por meio das Defensorias Públicas ou dos Escritórios Modelos das Universidades, que atendem de forma gratuita.
Na região, o Serviço de Assistência Jurídica da Univates (SAJUR) atua nessas ações, quando os interessados não possuem recursos.
ENTREVISTA
Aline Inês Heberle Heineck • psicopedagoga especialista em Neuropsicopedagogia
“Em algum momento, confundimos os papéis e hierarquias familiares”
Qual a sua avaliação sobre os números de crianças registradas sem o nome do pai?
A legislação brasileira prevê como direito de um recém-nascido ser registrado tanto pelo pai quanto pela mãe. Esse aumento de crianças registradas sem a presença do pai nos mostra um desequilíbrio educacional, onde ser responsável por suas ações já não é tão significativo. Isso vale também para a possibilidade da mãe não querer que o pai se faça presente na vida do filho, assumindo todas as responsabilidades de criá-lo sozinha, por muitos motivos. Seja o motivo que for, reforço a minha posição que em algum momento da nossa história confundimos os papéis e as hierarquias dentro de um sistema familiar e permitimos uma educação falha que foge dos princípios básicos de deveres e responsabilidades.
Quais os impactos desta falta na infância?
Desde muito cedo as crianças são inseridas em espaços sociais, um dos primeiros, e por obrigatoriedade, é a escola, onde é trabalhado a família nas suas diferentes formas, sempre respeitando o que cada criança traz consigo. No entanto, nesses momentos, a criança faz a correlação da sua família com a família dos colegas e isso pode gerar sentimentos de menos valia, insegurança, falta de limites, imunidade baixa que interfere na sua saúde física, dentre tantos outros problemas.
Serão percebidos alguns reflexos dessa falta paterna na adolescência e depois de adultos?
Acreditando em todo amor que uma mãe tem capacidade de dar a um filho, buscando de forma incansável suprir todas as necessidades, sejam elas materiais, morais, educacionais, mesmo que intimamente, terá reflexo sim, visível nas relações interpessoais ou na dificuldade de manter relações saudáveis com outras pessoas. Chamamos de feridas emocionais, que necessitam ser trabalhadas de forma intensa na adolescência, fase em que se busca, muitas vezes, meios ilícitos para suprir essa carência afetiva. Adultos que transgridem regras, leis, que muitas vezes agridem fisicamente e verbalmente seus pares, não mantêm empregos fixos, certamente estão relacionados a falta paterna na infância.