As mãos com algumas marcas do tempo seguram o terço e uma Bíblia em alemão. O cabelo arrumado e o rosto bem cuidado escondem outros vestígios da idade. Mas os documentos comprovam o centenário de Julieta Borger, comemorado na sexta-feira, 16. Como sinônimo de longevidade, ela tem a vida dedicada à agricultura e à fé.
Julieta supera a expectativa de vida do estado, de 77,45 anos em 2022, e entra para a lista das pessoas que atingiram 100 anos no Vale. Entre os hábitos, está a boa alimentação e o tempo dedicado ao trabalho manual.
O avanço da medicina é outro fator que contribui para a quantidade e qualidade de vida.
Natural de Alto Conventos, em Lajeado, Julieta é um exemplo. Ela conta que todo o consumo da família tinha origem no campo. As galinhas e ovos eram comprados dos vizinhos. A redondeza tinha tudo o que era necessário, tanto que era comum utilizarem chás naturais para combater qualquer enfermidade.
“Eu sempre trabalhei muito e rezei muito. Até hoje rezo e ensinei todos os filhos. A gente tinha muita roça para cuidar e tudo isso me deu ânimo para viver”, diz. Outro hábito que cultivava com o marido era a jogatina, em especial, a canastra. E, às 17h, ligavam a tv para assistir à missa.
Depois de 11 gestações, Julieta tem sete filhos vivos que, hoje, se dedicam ao cuidado da mãe, com escala em cada dia da semana.
Saúde e bem-estar
Além da agricultura, ela também trabalhou na venda da família, e se aposentou com 70 anos. “Começaram com o comércio de secos e molhados. A mãe cuidava da venda, os filhos trabalhavam na roça. O pai tinha caminhão e no tempo de folga, ia para a roça com a gente”, conta uma das filhas, Hilária.
Há pouco mais de 30 anos, Julieta se mudou para a casa em que vive hoje e um dos passatempos é conversar com os filhos. “Ela se preocupa muito com a gente. Quando alguém tem alguma coisa e ela sabe, pergunta todo dia como está”, conta outra filha, Lúcia.
Ela ainda diz que a mãe é durona e se preocupa com as contas. Quando um filho compra algo, trata de pedir o valor e devolver a quantia. Outro costume é comprar presentes de Natal e Páscoa todos os anos para as crianças da família que ainda não fizeram a 1ª Comunhão.
Neste domingo, 18, para a festa de aniversário, além dos filhos, os 19 netos, os mais de 30 bisnetos e dois tataranetos participam da cerimônia.
Dia de festa
Outro aniversário comemorado nas últimas semanas foi de Marieta Silveira Dornelles, que completou 103 no dia 9. Natural de Bom Retiro do Sul, ela mora hoje em Canabarro, Teutônia, e coleciona anos de memórias entre o trabalho na agricultura, o convívio com os vizinhos e a criação dos 10 filhos. Marieta comemorou mais um ano depois do centenário com festa. Cerca de 120 pessoas compareceram e o momento foi marcado por homenagens.
Com o chimarrão na mão e as lembranças guardadas em fotografias antigas, ela recorda as primeiras décadas de vida, e também mantém em casa o banco da escola onde estudou na infância. O objeto remete aos anos de estudos, mas também ao momento em que conheceu o marido.
Os dois começaram a namorar na adolescência, e ela lembra do pedido de casamento, feito em um dia de trabalho na lavoura. A mão de Marieta foi pedida para o pai e ela tinha 20 anos quando subiu ao altar.
Apesar de saudoso, o século que passou carrega desafios. Um deles era a falta de água na propriedade do casal, que se mudou para Seberi em busca de terras mais férteis para o cultivo. Na lavoura, plantavam de tudo. Marieta lembra, em especial, do milho.
Ela gostava de costurar e tinha o ofício também como uma necessidade, já que era a responsável por confeccionar as roupas e uniformes das crianças. Outras tarefas desempenhadas eram os serviços de casa. Além disso, em dia de chuva, era certo ir à boca do fogão à lenha para fazer pão.
Os filhos contam que, durante toda a vida, a mãe cultivou muitas amizades. “As pessoas procuravam ela, era amiga de todos. A gente nunca via a mãe triste ou chorando”, destaca Sirlei Terezinha da Rosa, 71. Ela e o irmão José Gonzaga Dornelles, 58, atribuem os anos bem vividos à disposição de Marieta e à sua fé.
113 anos de vida
Em Arroio do Meio, também há uma história centenária. E, apesar de raro, os documentos pessoais comprovam os 113 anos de Arlindo Osmar Soja, completos no dia 10 de junho. Hoje morador do Vale, a história do aposentado começou no então Distrito de São Domingos, no norte gaúcho.
Arlindo saiu de casa cedo e já iniciou o trabalho no campo, como caseiro em propriedades da localidade. O trabalho era árduo e nem sempre foi tratado com respeito. Mas recebia ajuda dos vizinhos. Depois que a esposa faleceu, o segundo casamento resultou em um filho de sangue e uma filha por registro, com quem mora hoje.
Além de São Domingos, o município de Casca também foi residência de Arlindo. A vida dele foi no campo e todos o conheciam pela redondeza. Mesmo depois de aposentado, continuou fazendo pequenos ofícios até os 102 anos.
“Depois disso não conseguiu mais trabalho e ficou frustrado”, conta a filha, Ana Paula dos Santos Soja da Silva, 31. O genro, Rafael da Silva, 31, diz que ainda hoje o sogro pede pela enxada para capinar e tem o sonho de ter sua própria casa.
Mas as atividades práticas ficam para a hora de fazer o fogo no fogão à lenha, para preparar a batata doce e polenta, alimentos que faz questão de consumir. A vida inteira, a alimentação foi natural, com alimentos que ele mesmo plantava e o preparo feito com água, sal e banha. A família acredita que este seja um dos hábitos que o levou ao centenário, além dos anos de trabalho.
ENTREVISTA
CARLOS LEANDRO TIGGEMANN • Professor de Educação e doutor em Ciência do Movimento Humano
“Viver mais é uma questão de qualidade de vida”
A Hora – Dados do RS mostram que a expectativa de vida dos gaúchos tem aumentado, você percebe essa realidade?
Tiggemann – A expectativa de vida está aumentando não apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o mundo. Nos próximos 20 a 30 anos, quase um terço da população será idosa. Podemos perceber isso pelo aumento no número de casas geriátricas e academias de ginástica. Ainda é um movimento um pouco tímido, mas aos poucos o mercado está se adaptando.
A Hora – A que isso se deve?
Tiggemann – A medicina teve um grande avanço desde os anos 70. Houve progresso na área de medicação, diagnóstico e uma campanha pública importante, além de uma valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que permitiu o acesso a exames para diagnosticar várias doenças que antes eram mais demoradas e levavam ao óbito. Além disso, houve maior cuidado com alimentação e atividade física. Apesar dos idosos ainda serem mais sedentários, a perspectiva é que tenham um envelhecimento mais ativo.
A Hora – Quais hábitos estão ligados à longevidade?
Tiggemann – É importante lembrar que viver mais não é apenas uma questão de quantidade, mas de qualidade de vida. Temos avançado muito nessa área do “viver bem”. É importante adotar hábitos preventivos, realizar check-ups regulares, ter uma alimentação balanceada, sem exageros, e se manter ativo, não apenas na academia, mas também nas tarefas domésticas, no jardim, caminhadas, entre outros. Além disso, é fundamental manter-se cognitivamente ativo, através da leitura, de conversas intelectuais e do desenvolvimento de habilidades cognitivas. Enfatizamos a ideia de que manter hábitos saudáveis ao longo da vida é importante.