Rumo ao absurdo

Opinião

Marcos Frank

Marcos Frank

Médico neurocirurgião

Colunista

Rumo ao absurdo

“Quando­ certa­ manhã­ Gregor­ Samsa­ acordou­ de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama meta­morfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre­ suas costas­ duras­ como coura­ça­ e, ao levan­tar­ um pouco­ a cabe­ça,­ viu seu ventre­ abaula­do,­ marrom,­ divi­di­do­ por nervu­ras­ arquea­das,­ no topo do qual a cober­ta,­ prestes­ a desli­zar­ de vez, ainda­ mal se susti­­nha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremu­lavam desamparadas diante dos seus olhos. “O que aconte­ceu­ comi­go?­”, pensou­.

Não era um sonho­…”

Assim começa o livro “A Metamorfose”, escrito por Franz Kafka em 1915. O autor nascido em Praga e que nos deixou precocemente aos 40 anos, vítima de tuberculose, narra a história de Gregor, que acorda transformado em um inseto, mas com a mente e os pensamentos humanos preservados, ao menos no início.

Sua única preocupação é não conseguir sair da cama devido à sua forma e se atrasar para trabalhar. Só que a situação começa a ficar complicada quando Gregor tem de se explicar à família e para o patrão.

Ou seja, Gregor não se rebela, nem se pergunta o porquê de tudo aquilo, apenas se adapta passivamente e vai se transformando em alguém que ele não queria ser e que acaba aos poucos a ser desprezado por todos. A família, aos poucos, se acostuma, e passa a tratar Gregor como um assunto rotineiro, uma questão logística.

Um dos efeitos criados pelo livro foi a disseminação do termo “kafkiano”, para designar, de uma forma geral, situações absurdas que intrigam e perturbam a mente humana. O dicionário Oxford assim define kafkiano: “Usado para descrever uma situação que é confusa e assustadora, especialmente envolvendo regras complicadas e sistemas que não fazem sentido.”

Algo muito parecido com o sistema judiciário brasileiro, senão vejamos:

1. Afastamento do governador do Distrito Federal por decisão monocrática de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

2. Bloqueio de perfis de políticos e cidadãos comuns nas redes sociais, como o ex-secretário da Receita, Marcos Cintra, que após publicar manifestação online pedindo esclarecimentos a respeito das urnas eletrônicas, teve suas redes rapidamente derrubadas por decisão judicial.

3. Prazo de uma hora para que o Telegram exclua mensagens enviadas aos seus usuários a respeito do Projeto de Lei 2630. Em caso de descumprimento, as atividades da empresa serão suspensas pelo prazo de 72 horas, com aplicação de multa de R$ 500 mil por hora.

4. A Defensoria Pública da União teve direito a um período de menos de 24 horas para apresentar a sustentação oral da defesa de parte de mais 250 denunciados nas manifestações de 8 de janeiro, antes do início do julgamento no STF

5. Sentenças antes consideradas definitivas em disputas sobre pagamento de impostos podem ser alteradas. A Corte também decidiu contra a chamada modulação. Ou seja, sem essa modulação, tributos que não foram recolhidos no passado poderão ser cobrados retroativamente, inclusive com juros e multa.

6. No Brasil temos o sistema acusatório aonde o Ministério Público é o órgão acusador e não o judiciário. Em um STF tomado por ministros indicados por políticos vemos decisões absurdas da Corte que se diz vítima, investiga, processa e julga.
Ao nos acostumar com tais decisões e arroubos autoritários nos igualamos a Gregor Samsa, o trágico personagem que transformou Kafka em sinônimo de absurdo.

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