Vale emprega pelo menos 11% dos haitianos no RS

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Vale emprega pelo menos 11% dos haitianos no RS

Pesquisa do DEE contabiliza 10,4 mil imigrantes do país caribenho com carteira assinada. Lajeado, Encantado, Poço das Antas e Arroio do Meio concentram mais de 1,2 mil desses trabalhadores

Vale emprega pelo menos 11% dos haitianos no RS
Fluxo migratório de haitianos na região ganhou mais intensidade a partir de 2013. Presença das comunidades se confirma em momentos culturais, como na comemoração do Dia da Bandeira, em Encantado. Crédito: Arquivo/A Hora
Vale do Taquari

Em busca de um sonho. De jogar futebol, estudar e garantir o sustento da família. Foi com esse desejo que Widmaer Jean, 32, desembarcou no Rio Grande do Sul. O ano era 2014 e a cidade escolhida por ele foi Estrela.

Na época, jogava futebol na República Dominicana. Também tinha experiência como eletricista e técnico de informática. Mas foi a admiração pelo esporte mais amado do país que o fez tentar a sorte no Brasil. Pegou as economias, fez contato com outros haitianos, mandou dinheiro para alugar uma casa mobiliada. Em seguida, conseguiu o visto e chegou sem saber nada de português.

“Foi muito difícil. Tinha alguma reserva, mas o dinheiro vai rápido. Não entendia nada que as pessoas falavam. Sabia que tinha de trabalhar, mas não por onde começar.” Assim como Jean, muitos haitianos chegaram ao RS. O fluxo migratório do país caribenho começou em 2010. Em 12 anos, hoje o Haiti se consolida como a segunda nacionalidade em termos de residentes nas cidades gaúchas.

É o que mostra pesquisa do Departamento de Economia e Estatística (DEE). O levantamento avalia dados de três fontes – trabalhadores com carteira assinada (Rais), sistema de imigração (Sismigra) e cadastro único de Assistência Social (CadÚnico). Em números totais, a base de dados do Sismigra indica que, em fevereiro de 2022, o RS contava com 93.088 registros de migrantes. A Rais indicou 20.992 de estrangeiros no mercado de trabalho formal. E o Cadastro Único, mostra 32.505 registros.

Conforme o autor do estudo, Tomás Pinheiro Fiori, as três nacionalidades com mais presença no RS são uruguaios, haitianos e venezuelanos. Estes dois últimos, trazem consigo características semelhantes, pois entraram devido à condição de refugiados e em situação de vulnerabilidade social.

Trabalho na indústria

A mão de obra haitiana tem um alto nível de formalização. Entre as 20 cidades com maior número de trabalhadores deste país, quatro são na região. Lajeado inclusive está na segunda posição no RS em termos de carteiras assinadas dessa naturalidade. Também se destacam Encantado, Poço das Antas e Arroio do Meio.

Juntas, empregam 1.234 mil haitianos só na indústria alimentícia, em especial no segmento de proteína animal. A economista e pesquisadora, Fernanda Sindelar, coordenou um estudo da Univates sobre fluxos migratórios.

Foram três anos de análise sobre a presença de haitianos no Vale do Taquari. “Observamos que se trata de uma comunidade com redes de contato muito intensas. Isso faz com que migrem para regiões ou cidades onde encontram mais oportunidades.”

Justo por isso, o Vale do Taquari se transformou em um destino comum. “Pelos nossos resultados, o Vale chegou a 80% dos trabalhadores formais do Haiti no RS. Um pouco diferente dessa análise do Estado.”

Conforme o DEE, são 20.992 estrangeiros com carteira assinada no RS, metade haitianos. Apesar do alto nível de formalização dessa mão de obra, o rendimento desses trabalhadores era 27% menor do que a média de todos os trabalhadores migrantes, com cerca de 1,66 salário-mínimo.

Na observação segundo o grau de escolaridade, a maior concentração (40,5%) tem Ensino Médio. Apenas 1,7% dos haitianos formalizados no mercado de trabalho gaúcho tinham ensino Superior completo em dezembro de 2020.

Da tristeza à realização de um sonho

Widmaer Jean chegou na região faz oito anos. Trabalhou em indústrias de ração e hoje é servidor municipal em Lajeado. Também está na universidade, cursa Relações Internacionais. Crédito: Filipe Faleiro

Os primeiros trabalhos de Widmaer Jean foi na indústria alimentícia. Atuou em fábricas de ração. Hoje é servidor municipal em Lajeado, na Secretaria de Desenvolvimento Social.

Também ingressou na universidade. Cursa Relações Internacionais na Univates. “Quando cheguei, senti muito preconceito. Tinha pessoas que me viam na rua e escondiam a mochila a bolsa, achando que eu era assaltante. Isso me deixava muito triste.”

Esses episódios funcionaram com combustível para estudar. Ele ingressou em um curso para aprender português. “Precisava me comunicar. Para as pessoas também me conhecerem.” Outra atitude de Jean foi se concentrar nas experiências positivas. “Em vez de pensar no preconceito que sofria, passei a me orientar por aquelas pessoas boas, que me tratavam bem e queriam me ajudar.”

Foi deste modo que chegou ao serviço público de Lajeado. Hoje, um dos trabalhos dele é servir de ligação entre os imigrantes e a rede de amparo da Assistência Social. “Hoje me sinto realizado. Não consegui ser jogador profissional, mas trabalho e estudo. Vou continuar assim, concluir minha faculdade e dar orgulho à minha família.”

 

 


Economista Fernanda Sindelar. Crédito: Ana Amélia Ritt/Divulgação

ENTREVISTA – Fernanda Sindelar • economista e pesquisadora

“O Vale aprendeu a acolher o imigrante”

Uma das coordenadoras do estudo “A dinâmica da imigração laboral internacional contemporânea: o caso do Vale do Taquari no período de 2010-2018”, Fernanda Sindelar acredita que a região hoje tem mais conhecimento sobre como acolher imigrantes

A Hora – Quais as características dos fluxos migratórios do século 21?

Fernanda Sindelar – São pessoas em situação de vulnerabilidade. Em países com crises, seja devido a questões naturais, como o terremoto no Haiti em 2010, ou humanitária, como na Venezuela. Na nossa região, o maior volume de estrangeiros começou a chegar entre 2013 e 2014. Naquele momento o Brasil tinha uma grande visibilidade internacional, seja pela realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas.

Também havia uma imagem internacional de um país em desenvolvimento, com oportunidades e uma economia sólida. Para os haitianos, há muito presente o auxílio para a família que fica. Eles chamam de diáspora. Naqueles anos, mandar 100 dólares aos familiares era mais fácil. A partir de 2019, essa chegada de haitianos diminuiu. Inclusive, em Lajeado, líderes da comunidade afirmavam que menos da metade ficaria aqui, pois tinham expectativas de irem para os Estados Unidos ou para o Canadá. Tudo por conta do aumento no custo de vida.

Essa é uma característica marcante dessa imigração. São povos que migram para onde estão as oportunidades. Eles têm redes de contato muito constantes. Por exemplo, se em São Paulo há alguma condição que pode ser melhor, eles vão. Os venezuelanos são bastante similares neste aspecto. Também chegaram em busca de melhores condições de vida.

De 2010 para cá, quando iniciou essa imigração haitiana. Como avalia esses períodos em termos de acolhimento tanto pela comunidade quanto pelos setores públicos?

Fernanda – Hoje podemos dizer que a comunidade haitiana estabeleceu vínculos com a região. Criaram igrejas, há uma presença na comunidade. Ao mesmo tempo, o Vale aprendeu a acolher o imigrante. O poder público se preparou, tem pessoas para ajudar na comunicação. A própria Univates criou projetos para dar aulas de português aos haitianos. Dentro das empresas, temos grupos de imigrantes em grande contingente, que inclusive ajudam nessa adaptação.

Um cenário muito diferente em comparação com as primeiras chegadas. Temos também essa questão cultural, há mais aceitação. As comunidades aprenderam as características do povo haitiano. Tanto que temos novas gerações. Filhos de haitianos nascidos brasileiros.

– Quanto à vulnerabilidade desses imigrantes. Esses movimentos podem aumentar os bolsões de miséria?

Fernanda – Não vejo mais como algo só dos imigrantes ou de famílias carentes brasileiras. Inclusive isso costuma ser pior para os estrangeiros, muito pela discriminação. Há um pensamento que eles chegam para disputar vagas de trabalho. Não é bem assim. Percebemos que os imigrantes assumem postos de trabalho que os moradores daqui não querem. Ficam com as vagas menos nobres e em maior quantidade.

Por isso mesmo, se estabelecem nas periferias. Tudo isso influência nas condições sociais. O que vai dizer se o Brasil, o Estado e a região continuarão na rota da imigração, dessa de característica humanitária, é a economia. Caso houver um cenário de mais competitividade internacional, de redução do custo de vida, novas etapas dessa imigração podem ocorrer.

 

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