Na residência onde morava em Arroio do Meio, a família Lanz fazia os últimos preparativos para a viagem, e no dia 2 de setembro de 1931, há 91 anos, partiu de Porto Alegre para cruzar o país. O percurso já era ousado o bastante para a época. Mas o veículo utilizado, um barril de 1,9 m de comprimento e 300 kg, deixou a aventura ainda mais interessante.
O imigrante alemão Leopoldo Carlos Lanz relata a viagem ao lado da esposa Florinda e da filha Lia, de dois anos e meio, em um livro publicado em 1934, na língua natal, intitulado “Der neue Diogenes”.
A obra foi traduzida para o português pelo historiador Wolfgang Hans Collischonn em 2020, com o nome “O Novo Diógenes com um barril rolando pelo Brasil”. Ainda hoje, a história é tão inusitada, que quem sabe da aventura só acredita depois de verificar as fotografias.
O primeiro dia
A viagem foi motivada pelo desejo da família de conhecer o Brasil. Leopoldo relata no livro que, no interior do barril, estavam embutidas duas camas. Embaixo delas foram colocados pequenos armários com roupas, sapatos, armas, livros e outros utensílios. Nas extremidades, havia uma janelinha e a tampa da frente, por onde os viajantes entravam quase deitados.
Quando partiram, todos olhavam espantados e perguntavam para onde a família iria com a engenhoca. Depois de contar o plano, escutavam as exclamações: “Gente, vocês não estão regulando bem, vocês acham que as estradas do interior do país são iguais a estas aqui? Nem à divisa deste estado vocês vão chegar com este veículo”.
Mas os comentários não desencorajaram a família. A primeira noite que passaram no barril foi em Canoas, e Leopoldo relatava estarem muito confortáveis na nova moradia.
Barro, tombos e recomeços
O casal dividia a tarefa de puxar ou empurrar o barril pelo caminho. Mas as estradas nem sempre eram boas. Quando chovia, ficavam escorregadias, e o curioso veículo deslizava pelas ruas. Numa dessas caíram, e Florinda ficou com a perna debaixo do barril.
Alguma comida era guardada nos compartimentos e, para saciar a sede, sugavam a seiva de gramíneas mais robustas e úmidas. Para a pequena Lia, sempre havia reserva de chá ou café.
Mas, muitas vezes, os viajantes tinham que parar para pedir água nas casas por onde passavam. A menina também brincava com as crianças das fazendas. Durante a viagem, paravam, fumavam charutos e conversavam com as pessoas. De vez em quando, presenteavam a filha com pedrinhas, flores e outros objetos pequenos que encontravam pelo caminho.
A mula Francisca
Em Antônio Prado, foram surpreendidos por um morador que vendeu uma mula encilhada, chamada Francisca, por 130 mil réis (hoje, cerca de 16 mil reais). A partir dali, o deslocamento ficou mais ágil. Lia passou a montar a mula, e orgulhava-se em dizer que caiu apenas duas vezes.
Pelo caminho, Leopoldo fazia suas percepções: “Geralmente o brasileiro é um homem simples, seja ele dono ou empregado, e diz com razão: amanhã poderá ser diferente e invertido. Assim nós europeus, em relação a vários aspectos, podemos aprender muito deste jovem povo que é mais livre de preconceitos e mais alegre do que nós”, relata no livro. Depois de dois meses cruzaram a fronteira do estado com Santa Catarina.
Desafios pela estrada
Seguiram a viagem para o norte, e outro momento marcou a travessia. Um temporal no Paraná fez cair um pinheiro em frente à entrada da pipa, trancando a passagem. A família tinha apenas alguns biscoitos e frutas em conserva e, depois de um dia e meio presos, o medo de morrer de fome apareceu.
Mas Leopoldo teve uma ideia: ele e a esposa se revezavam na tarefa de fazer um buraco com canivete no tronco caído e liberar a passagem. Quando conseguiram sair, viram que o temporal havia destruído as redondezas e deixado alguns mortos.
Aplausos e curiosos
A família chegou em Curitiba perto do Natal, e passou as festas no condomínio da família Mates. Nos últimos dias na cidade, deixaram a pipa no Jardim da Cervejaria Asiática, que recebia muitos visitantes.
“Várias vezes aconteceu que já estávamos deitados e eu tive que sair do barril para explicar a nossa viagem. É compreensível que, nestas ocasiões, houvesse algum copo de cerveja para tomar o que, naturalmente, não me incomodava”, relata o viajante.
Naquela altura, a família já era conhecida e aplaudida por onde passava. Ao chegar no estado de São Paulo, Leopoldo escreve: “Até aqui nós percorremos cerca de 2 mil quilômetros. A notícia de nossa original viagem havia se espalhado por Itararé. O prefeito da cidade não poupou esforços para tornar agradável a nossa passagem em sua cidade”.
Alguns também se mostravam curiosos. Ao chegarem em Sorocaba, ouviam gritos como: “A família da pipa está chegando!”. E a pequena Lia era vista como heroína. A criança completou 3 anos durante a viagem, e as pessoas a convidavam para festejar em suas casas. Ela também recebeu muitos presentes.
Já no Rio de Janeiro, centenas de pessoas apareceram para ver aquela estranha moradia e fazer perguntas. A família foi cercada pelos jornalistas cariocas e, na mesma noite, os jornais vespertinos traziam páginas inteiras a respeito da viagem.
Aventura interrompida
A ideia da família era subir até o norte do país. Mas, ao chegarem em Juiz de Fora, em Minas Gerais, foram surpreendidos pela Revolução Constitucionalista. Desencorajados pelas autoridades a seguirem o trajeto, Leopoldo, Florinda e Lia deixaram a pipa e voltaram ao Vale de navio, depois de nove meses de aventura.
Tradução
Na década de 1990, Wolfgang Collischonn escrevia colunas em alemão para O Informativo. Em um de seus textos, contou a história da família e percebeu a desconfiança dos leitores. Foi assim que a foto de Leopoldo, Florinda e Lia junto do barril foi divulgada, como prova do acontecimento.
Há cerca de 20 anos, o historiador recebeu de um vizinho a versão alemã do livro de Leopoldo, que estava em Arroio do Meio. Mas só iniciou a tradução durante a pandemia. A obra teve distribuição de 80 exemplares.
Mais do que um diário, o historiador diz que o material era um relato de viagem, onde Leopoldo escrevia suas percepções dos lugares que passava. “Ele escrevia em folhas de papel, era muito organizado, e guardava tudo na pipa”, conta Collischonn.