A biografia é um gênero recorrente, assim como o fascínio do público pela história de vida dos famosos. Pois a autobiografia de Miles Davis, recentemente relançada, renova o choque provocado em seu primeiro lançamento, em 1991, mesmo ano da morte de Davis.
Ainda que, como toda a autobiografia, esteja centrada no eu, o trompetista coloca o leitor diante de uma amplo panorama do mundo do jazz e de uma América que não representa exatamente a terra das oportunidades para todos. Em tempos em que as lutas antirracistas e contra a intolerância se fazem ouvir mais alto – justo porque a violência também se acirra – Miles Davis é um bálsamo que arde e este talvez seja o grande diferencial do livro.
Ao contrário da maioria dos jazzistas negros da época, Miles Dewey Davis III provinha de uma família de classe média alta, proprietária de muitas terras. A mãe era uma reconhecida pianista de blues e o pai, dentista. Nem por isso, passaram despercebidas, para Miles, as diferenças sociais e, sobretudo, a discriminação racial em seu país e os modos como isso afetava o mundo da música negra e a vida cotidiana das pessoas.
Chama a atenção, na leitura, a feroz crítica de Davis a Louis Armstrong, o grande nome do jazz e o trompetista que, pode-se dizer, inspirou a todos os trumpet masters da época e posteriormente. Para Davis, o modo como Satchmo se apresentava, ostentando sorrisos bonachões para a plateia branca, teve um papel fundamental na estereotipação de pessoas negras. Na mesma linha, o artista, ao longo do livro, denuncia as inúmeras vezes em que a música de negros desaparecia na mão de empresários inescrupulosos para ressurgir como autoria de quem fosse mais conveniente para as gravadoras.
Não existe, porém, autocomiseração na narrativa carregada de palavrões e, às vezes, de raiva. Ele enxerga a situação discriminatória como uma exigência para seguir e denunciar. Sobre a vida pessoal e seus tropeços também não há escusas. Davis é implacável consigo mesmo. Na longa convivência com as drogas, fala dos casamentos desfeitos, do descaso com os filhos, das perdas econômicas em função do vício.
Há pouco que eu possa falar sobre a arte propriamente dita do autor do icônico Kind of blue. A música de Miles Davis é a música de um gênio e, nesse patamar, cabe a um expert comentá-la. O que me absorve, no livro, é, por um lado, circular pelos clubes na companhia hipotética de Dizzy, Bird, Monk, Trane… Por outro, é a vida mesma de Miles que rompe definitivamente com a ideia cara ao imaginário coletivo de um artista alienado em si mesmo e na sua arte. Aliás, o que mais chama a atenção é o sujeito atento a tudo e, por isso, crítico.
Ao encerrar a leitura, só posso dizer que Miles Davis não cabe no próprio livro. Por isso, não posso deixar de recomendar Miles Davis, inventor do cool, 2019, documentário disponível na NETFLIX. O filme traz entrevistas inéditas sobre o trompetista que seguiu à risca a lição do seu mestre no Ginásio Lincoln: “Você tem talento bastante para ser você mesmo.”
Kind of Miles
DAVIS, Miles; TROUPE, Quincy. Miles Davis: a autobiografia. 2ª ed. Trad. De Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Campus, 2022.