Investigação de improbidade administrativa e suposta ameaça de morte estão por trás da perda de licença para venda de proteína animal, produzida em Arroio do Meio, para todo o país. A suspensão do selo do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi-POA) impacta os negócios de três empresas.
O Ministério Público (MP) apura irregularidades no Sistema de Inspeção Municipal (SIM). Enquanto a promotoria local abre inquérito de improbidade administrativa, a Procuradoria de Prefeitos investiga se os atos configuram crimes do Executivo.
As denúncias foram levadas ao MP em junho, pelas fiscais Bruna Scheuermann e Morgana Beise. Elas alegam sofrer pressões no ambiente de trabalho, que geraram o afastamento das servidoras com laudos psiquiátricos. Antes da licença médica, três sindicâncias foram abertas contra as médicas veterinárias concursadas.
Uma das investigações administrativas diz respeito a uma discussão entre Bruna e o veterinário Nestor Diehl, terceirizado pela administração municipal para atuar na inspeção. Diehl afirma que o contrato com a prefeitura encerrou em dezembro e não quis dar outros esclarecimentos.
Outra sindicância é sobre o não comparecimento de Bruna e Morgana em reunião com o secretário de Agricultura, Élcio Lutz. “Nós tínhamos marcado dias antes uma reunião com o prefeito. Simplesmente, elas foram para um frigorífico”, relata Lutz. As funcionárias alegam que já estavam afastadas.
Ainda há um inquérito que apura suposta saída de Bruna de uma inspeção antes do fim expediente. A servidora afirma que câmeras de segurança e o GPS do carro deslegitimam a denúncia.
Prejuízo às empresas
Um dos maiores prejudicados pela suspensão do Sisbi, o Frigorífico Guiland, abatia e desossava suínos para a Cooperativa Dália todas as semanas. Sem o selo, perderam seu principal contrato.
Segundo o empresário Éster Guiland, havia um plano de expansão da indústria. “Tínhamos projeções para 2022 que foram para o espaço. Se reverter a situação, temos que primeiro recuperar o prejuízo para depois pensar em ampliação”, lamenta.
Ele afirma que não houve problemas sanitários no frigorífico. “Nas auditorias que tiveram, eles não apontaram nada. Isso tem que ser resolvido pela inspeção e a administração”.
Sócio de outro frigorífico, que preferiu permanecer anônimo, estima um prejuízo de R$ 200 mil mensal, desde a suspensão da licença nacional, em setembro. A comercialização teve de se limitar ao município por dois meses. Agora, a indústria consegue vender para o RS. O abatedouro diz que não pretende retornar ao Sisbi.
Uma indústria de embutidos também sente o impacto da suspensão do selo. A empresa se mudou de Lajeado, atraída pelas facilidades promovidas pela certificação do sistema de inspeção do município. A construção da fábrica em Arroio do Meio iniciou em outubro de 2020.
As operações continuam com vendas dentro do estado. Uma exportação para Bahia está travada por conta dos imbróglios que envolvem a inspeção municipal. O empresário também optou por não ser identificado.
Ameaça de morte
Boletim de ocorrência, na Polícia Civil (PC), registra uma ameaça indireta de morte contra as servidoras. Em chamada telefônica, um homem teria dito que caso as sindicâncias não fossem suficientes, o incômodo com as veterinárias poderia ser resolvido com “uma bala na cabeça”.
O delegado Dinarte Marshall reconhece o registro de ameaça, mas afirma que o processo segue em sigilo de Justiça. “Na PC, não tem nada em andamento”, afirma o responsável pela Delegacia de Polícia.
“O medo delas fez com que elas parassem”, diz o advogado que representa as médicas veterinárias, Adriano Puerari. “Como existiam outros elementos para outro tipo de crime, nesse momento, optamos por não seguir com a denúncia de ameaça.
Audiências na câmara
Vereadores convidaram, na terça-feira, 18 as servidoras afastadas, o secretário de Agricultura e o veterinário prestador de serviços ao município para uma reunião. O pedido veio de Rodrigo Kreutz (MDB). Conforme o parlamentar, a tentativa de diálogo foi uma sugestão do terceirizado, Nestor Diehl.
Em uma audiência anterior, em dezembro, Diehl propôs um projeto de lei que modificava os critérios para coordenação da inspeção sanitária. A matéria permitiria qualquer pessoa com conhecimento técnico se responsabilizar pelo serviço.
“Ele nos colocou que se aprovássemos aquele projeto, o Sisbi iria voltar”, diz Kreutz. O texto foi considerado inconstitucional pelo jurídico da câmara. “Não adianta criar cargos e situações que não vão resolver”, acrescenta o vereador.
Em fevereiro de 2021, o secretário Élcio Lutz foi nomeado coordenador do SIM. Portaria de 7 de julho nomeou a servidora Bruna Scheuermann como coordenadora do serviço de inspeção. A publicação tinha efeito retroativo desde 19 de fevereiro.
“Fomos nomeadas, sem sermos consultadas”, afirma Bruna. “Eu teria que responder tudo que o secretário havia feito”, acrescenta. Morgana Beise recusou o cargo pelas mesmas razões.
Administração se posiciona
“Nunca foi feita pressão. Se sofreram pressão nos abatedouros, nós não temos conhecimento”, declara o prefeito Danilo Bruxel. “O que nós exigimos dos nossos servidores é que eles trabalhem dentro da legalidade. Ainda mais elas que trabalham em questões de saúde”, acrescenta.
O MP investiga se houve promessa eleitoral de abrandar a fiscalização dos frigoríficos. Bruxel nega. “Nós jamais iríamos fazer isso, nunca fiz campanha dessa forma”.
“A atual administração resolveu se posicionar a favor dos frigoríficos”
Carla Pereira Rêgo Flores Soares, promotora de Justiça
Responsável pela promotoria de Arroio do Meio, Carla Pereira Rêgo Flores Soares, recebeu as denúncias em junho e está à frente da investigação por improbidade administrativa.
A Hora – Depois de receber as denúncias, quais foram as medidas tomadas pelo MP?
Carla – Eu fiz um pedido para a força-tarefa de segurança alimentar do MP fazer uma vistoria e também pedi para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) vistoriar. Oficiei o prefeito para que eles se manifestassem sobre as denúncias. Nessa época, nem todas as irregularidades tinham se consumado. Eu imaginei que, com o ofício, as coisas não chegariam ao ponto que chegou. Eles continuaram fazendo errado, o Mapa veio e suspendeu o certificado.
A Hora – Quais são as linhas de investigação?
Carla – O expediente está concluso comigo, ele é sigiloso. Tem tanto uma linha criminal, quanto de improbidade administrativa. Se existe crime praticado por prefeito, não é investigado pelo promotor de justiça local. Como há indícios fortes que há envolvimento do prefeito nessas irregularidades, a parte criminal será investigada pela Procuradoria de Prefeitos, e a parte da improbidade vai ficar com o MP de Arroio de Meio.
A Hora – O afastamento das servidoras reflete, de forma direta, na perda do Sisbi? Elas se afastaram por pressão psicológica?
Posso garantir que foi em razão das pressões. Mas, já existiam irregularidades. Independente delas se afastarem ou não, muito provavelmente, terminaria na suspensão. Perder essa certificação significa perda de dinheiro, perda de empregos, talvez fechamento de empresas. A atual administração resolveu se posicionar a favor dos frigoríficos. Ceder as profissionais para os canis. A ideia e a promessa feita para os frigoríficos é que elas seriam afastadas. Eles prometeram e depois tentaram cumprir. Segundo relatos, isso foi uma promessa de campanha política. Ninguém falou em financiar propaganda política, mas isso foi uma promessa de campanha, “se nós ganharmos a eleição, vai mudar tudo”.
A Hora – Há possibilidade de motivação política das servidoras que fizeram a denúncia?
A versão delas nunca foi algo isolado que demonstrasse uma conotação política. Não acredito que haja motivação política nas denúncias. Desde que eu cheguei em Arroio do Meio, havia um inquérito civil em relação a um frigorífico. Há um histórico de um funcionário público, veterinário do município, que se exonerou em razão de ameaças. Esse tipo de fiscalização e de atitude já existiam com a outra administração.
A Hora – Em uma audiência na câmara em dezembro, foi dito que as servidoras “têm costas quentes com o MP”. Como você reage a isso?
Ninguém tem costas quentes com o MP. O MP não pessoaliza nada. Simplesmente, elas são funcionárias públicas que sempre se mostraram honestas e corretas. O promotor não vem para agradar ninguém, vem para trabalhar. O trabalho do promotor sempre vai agradar uns e desagradar outros.