Alta velocidade em vias públicas, com corridas entre cidades. Algo inimaginável nos dias atuais, mas um grande sucesso na década de 50, quando Encantado era palco do Circuito do Alto Taquari. Por cinco anos, as chamadas Corridas de Carreteiras garantiram adrenalina e emoção nas estradas de chão batido dos vales do Taquari e Rio Pardo, e formaram pilotos reconhecidos no automobilismo regional.
Veja o vídeo:
Naquela época, os carros se preparavam em fila enquanto as famílias desejavam sorte aos corredores. Algumas mães e esposas também rezavam para que os pilotos voltassem vivos. Sabia-se que aquela era uma modalidade de risco.
O 1º Circuito do Alto Taquari ocorreu em 1952, de Encantado a Santa Cruz do Sul, ida e volta, somando 472 km. Naquele ano, o carro de número 22 foi o campeão, e um piloto de destaque foi Claudino Zen que, com o Opala 37, era capaz de atingir 260 km/h em 900 metros de percurso.
Os trajetos também passavam por cidades como Arroio do Meio, Lajeado, Porto Mariante, Venâncio Aires, Santa Cruz do Sul, Rio Pardo e Cachoeira do Sul, pelas estradas principais. Nos dias de prova, havia fiscais e o trânsito era interrompido para o evento. Um médico também acompanhava o percurso para prestar os primeiros socorros. As provas eram organizadas pelo Automóvel Clube do Rio Grande do Sul e apoiadas pela Associação Riograndense de Volantes e pelas prefeituras.
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No livro “Loucos por velocidade”, o escritor Airto Gomes remonta as histórias e personagens que marcaram as Corridas de Carreteiras. (Foto: Julia Pisoni)
Das estradas para a literatura
O escritor Airto Gomes era um espectador privilegiado do chamado Circuito Alto Taquari e as lembranças dos tempos áureos das competições incentivaram a criação do livro “Loucos por Velocidade”, lançado em 2008, com 255 páginas sobre as tradicionais corridas que marcaram época no município.
Ainda criança, nas décadas de 50 e 60, ele lembra de assistir aos corredores que saiam de Encantado, movimentando todas as comunidades ao longo do percurso em estrada de chão batido. “Eu ficava com amigos e parte da população nos barrancos da estrada e observava os carros irem e retornarem, sempre torcendo pelos meus favoritos. Entre eles, Argemiro Pretto, Diogo Elwanger e os irmãos Andreatta”, conta o escritor.
Quem também representava a região na época eram nomes como Aristides Bertuol, Osvaldinho Oliveira, Juvenal Martini, Alcides Pretto, Edésio Cé, entre outros.
Os pilotos vinham de várias partes do estado e de fora dele, e chegavam no Vale do Taquari uma semana antes da corrida, com as máquinas artesanais já preparadas em oficinas para aguentar uma velocidade de até 120 km em curvas de estradas de areia.
Além disso, eram pintados e numerados. A potência do motor e a estabilidade, complementadas com o “braço” do piloto eram diferenciais nas competições. Nas categorias força livre e standard, eram cerca de 15 a 20 automóveis que competiam, cada um com uma dupla, o piloto e o co-piloto.
“Com o passar dos anos, Encantado era um celeiro de famílias tradicionais, amantes do automobilismo, e de jovens que herdaram o gosto por corridas dos avós, dos pais e outros familiares”, destaca Gomes. Além de um momento de lazer, as corridas também surgiram para divulgar os municípios que faziam parte do trajeto.
Nos dias de evento
As provas duravam cerca de uma hora para a ida e outra para a volta. Com início pela manhã, os pilotos paravam ao meio dia para almoçar e voltavam a correr durante a tarde.
“Eles largavam um a um por tempo e aproveitamento no trajeto, e quem conseguia superar os inúmeros obstáculos que se ofereciam, vencia. Muitos nem completavam a prova.”, conta Gomes.
No fim do evento, a comemoração se somava a um desfile nas ruas da cidade, com direito a foguetes. Depois eram distribuídas as honrarias com entrega de prêmios e um baile na sociedade local.
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Prova de Encantado a Cachoeira. Terras de Teodoro Schnack, em Palmas (Foto: Arquivo Pessoal)
Um gosto de gerações
O gosto pelas chamadas carreteiras estava no sangue da família Pretto e, desde pequeno, Arlindo Pretto, 73, assistia o pai e os tio correrem pelas estradas da região. Naquele tempo, ele também se imaginava dentro do carro 56, que virou o número da sorte da família, e queria ser corredor.
A primeira vez em que foi para a estrada como piloto foi em 1973, no Autódromo Internacional de Tarumã, em Viamão, quando tinha 25 anos. “Eu gostava muito. Quando estava no autódromo me sentia muito feliz”, conta.
Na época, as carreteiras em Encantado já haviam acabado e, do evento, ele coleciona recordações. “Eu ia na oficina olhar eles mexerem no carro, a gente vivia isso, as corridas, estava dentro da gente”, lembra.
A família Pretto corria com um carro da Chevrolet na década de 50. Outros competiam em um carro Ford ou outras marcas automobilísticas, mas o mais comum era escolherem pelo Chevrolet ano 39. Eram carros adaptados e, nas oficinas, os competidores preparavam um motor mais potente e uma máquina com mais estabilidade.
Nas estradas de chão, as provas eram arriscadas, mesmo assim, tinham muitos adeptos. Alguns acidentes também ocorriam, e algumas mortes foram registradas.
“Uma vez meu tio foi correr em São Paulo e tinha um trilho de trem no meio do percurso. Eles imaginaram que o primeiro carro passaria às 15h, mas calcularam mal. Meu tio chegou antes, o trem pegou ele e metade do carro se foi, mas ele ficou bem”, conta Arlindo.
Ele também lembra que quando o pai e tio correram uma prova de mil milhas, ele passou a noite com a mãe e a tia escutando a transmissão da corrida pela rádio. Naquela noite, iniciaram o trajeto perto da meia-noite e, das 12h horas de prova, correram 5h. Tiveram que parar por um problema no carro. Durante as provas, as famílias se preocupavam. “Os homens corriam e as mulheres rezavam”, recorda Arlindo.
Em casa, ele ainda guarda uma réplica da carreteira de número 56 feita por ele mesmo na oficina administrada pela família há gerações. O carro original ainda existe, mas está em Bento Gonçalves para reparos. Arlindo conta que o tio Argemiro Pretto foi um dos principais pilotos do município e um dos melhores da modalidade.
Uma lenda das carreteiras
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Aristides Pretto era um dos competidores. (Foto: Arquivo Pessoal)
Segundo relatos nos livros de Gomes, Argemiro Pretto foi considerado o maior piloto de carros de corridas na história de Encantado. Quem viveu na época conta que o piloto virou “lenda” na modalidade.
O carro de Argemiro era preparado artesanalmente na oficina da revenda Chevrolet, que era do pai, João Pretto. Argemiro tinha fãs e era considerado por eles um “insatisfeito” por gostar das ultrapassagens.
Nilo Chanan foi copiloto de Argemiro por muitas competições. Ainda em vida, ele contou à Gomes que o piloto tinha o pé pesado no acelerador e uma visão de estrada, que era repleta de curvas, como poucos.
Outro morador, Omar “Nico” Ferri, conta que Argemiro era considerado o melhor corredor de carreteiras de todos os tempos. Costumava enfrentar estradas pedregosas, com poeiras, desníveis e perigosas chuvas.
Ao lado dele e do irmão Alcides, competiram pilotos famosos da época, como Catarino Andreatta, Diogo Elwanger e Aristides Bertuol, também considerados lendas do automobilismo gaúcho e nacional das carreteiras.
O último circuito
Encantado foi palco de cinco provas de automobilismo a partir da década de 50, em 1952, 1953, 1954, 1955 e 1956. Os pilotos que concorriam pelo município conquistaram dezenas de pódios e projetaram a cidade para fora do estado e do país.
Ao longo dos anos, com o aumento da circulação de veículos e pelo perigo com a projeção das novas máquinas, as corridas de estradas de chão se tornaram inviáveis. Em contrapartida, foram construídos protótipos e carros adequados para provas em circuitos fechados e autódromos que se espalharam pelo país.
Apesar do fim de uma tradição no município, hoje, muitos pilotos ainda continuam com a herança dos amantes da velocidade e participam de provas no Circuito Nacional, em diferentes categorias, ou mesmo em “pegas” de provas de velocar e motocross.
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Réplica de uma carreteira. O 56 era o número da sorte da família Pretto. (Foto: Arquivo Pessoal)