Entre os 38 presidentes do Brasil desde a proclamação da República, um deles teve laços fortes com o Vale do Taquari. Ernesto Beckmann Geisel esteve à frente do país entre 1974 e 1979. Foi o 29º chefe do Executivo nacional e o quarto do regime militar (1964-1985). Neste domingo, 12, sua morte completa 25 anos.
Filho de imigrantes alemães e caçula de cinco irmãos, Geisel nasceu em Bento Gonçalves, mas foi batizado em uma igreja no interior de Westfália. Passou parte da infância em Estrela. Casou-se com uma estrelense, Lucy, prima de primeiro grau. Décadas depois, já como presidente, Geisel teve um olhar especial ao município.
Foi em seu mandato que ocorreu a construção do complexo do Porto de Estrela. Deixou sua marca também em outros municípios. Participou das negociações que resultaram na construção da ERS-128, conhecida como Via Láctea, entre Teutônia e Fazenda Vilanova. Em seu mandato, as obras da Barragem Eclusa, em Bom Retiro do Sul, foram finalizadas, em 1976. Por fim, viabilizou a construção do Viaduto V13, o maior da América Latina, localizado em Vespasiano Correa.
Após a vida política, Geisel residiu no Rio de Janeiro até o fim de sua vida. Um câncer generalizado, em 1996, causou sua morte. Foi sepultado no Cemitério de São João Batista, mas seus restos mortais e de Lucy foram levados para Porto Alegre, em 2003.
O interesse por trás do Porto
Antes de comandar o país, Geisel foi presidente da Petrobras durante o governo de Emílio Garrastazu Médici. Seu interesse pela área da extração petrolífera, por sinal, está ligada diretamente à construção do Porto de Estrela, segundo o historiador e pesquisador Airton Engster dos Santos.
O complexo, inaugurado em 1977, era considerado estratégico pelo então presidente. Na época, o país ainda sentia os efeitos da crise petrolífera de 1973, ocasião em que o preço do barril de petróleo subiu de 3 para 12 dólares.
“O Brasil tinha uma dívida externa impagável e o Geisel tinha ciência disso. Precisavam de um produto para vender a esses caras. Então passou a exportar farelo de soja para pagar parte do petróleo. Nossas indústrias tinham capacidade de produzir 3,6 mil toneladas de soja por dia. Era algo muito maior do que as pessoas pensam”, comenta.
Somada às outras obras, a construção do Porto causou um “boom” econômico em Estrela. A população, entre 1970 e 1980, cresceu em quase 9 mil pessoas, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“A cidade não tinha mão de obra suficiente para atender a demanda. Então, veio muita gente de fora. Nunca tivemos um crescimento populacional tão grande como nessa época”, recorda Engster, que emenda. “Estrela poderia ter aproveitado mais este período”.
Ausente na inauguração
Geisel não esteve na inauguração do Porto de Estrela. Na noite anterior à solenidade, o sogro, Augusto Frederico Markus, faleceu. “Enquanto o vice-presidente Adalberto Pereira dos Santos inaugurava a obra, Geisel enterrava o sogro no cemitério. Isso é uma tradição dos alemães”, afirma Engster.
Anos depois, a esposa de Geisel, Lucy, esteve na inauguração da avenida Augusto Frederico Markus, uma homenagem ao pai, que foi intendente de Estrela em três oportunidades. A via está situada no bairro das Indústrias, próxima ao Porto.
Contexto econômico
A construção do Porto – e de outros modais de transporte no país – deram a Geisel a alcunha de “desenvolvimentista”. O 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) foi, inclusive, alvo de críticas de apoiadores do regime militar, como lembra o economista Rafael Spengler.
“Houve uma espécie de manifesto do empresariado, de que a iniciativa privada queria investir, mas o governo não deixava. Fazia tudo. Várias estatais foram criadas nessa época”, explica Spengler, que analisou a política econômica de Geisel em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Geisel recebeu o país logo após o chamado “Milagre Econômico”, período de crescimentos expressivos do Produto Interno Bruto (PIB). Porém, o choque do petróleo mudava o cenário. “Na época a Petrobras não tinha tantas bacias de petróleo quanto agora. Ele reforçou o investimento para procurar petróleo no país”, salienta.
O 2º PND, conforme Spengler, foi implantado em meio a um período de institucionalização do regime militar, preparando o terreno para a redemocratização que ocorreria uma década depois. Também tinha o objetivo de frear o crescimento dos movimentos oposicionistas e, ainda, arrefecer a chamada “linha dura”, cujos principais líderes militares rejeitavam a abertura política.
“Só que esses investimentos maciços ocorridos em seu governo elevaram muito a dívida do país. Em 1979, com o segundo choque do petróleo, houve uma elevação das taxas de juros internacionais. E a dívida, que já era grande, ficou ainda maior e insustentável”, pontua Spengler.
Embates políticos
Filiado à Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que dava sustentação ao regime, Geisel também teve influência na política municipal. Engster lembra que a primeira audiência em Brasília, enquanto presidente, foi com um grupo de líderes da sigla em Estrela.
“Nas eleições municipais de 1976, a família de Geisel indicou Nilo Fensterseifer para a disputa. Era um período de muita tensão política em Estrela”, recorda. Apesar do apoio presidencial, o candidato arenista foi derrotado por Hélio Musskopf, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), apoiado pelo então prefeito Gabriel Mallmann.
Musskopf iniciou a trajetória política em Bom Retiro do Sul, onde nasceu, como vereador. Estava em Estrela há apenas quatro anos, a convite de Mallmann. Foi secretário de Planejamento e se tornou o sucessor no Executivo por acaso. O então candidato a prefeito pelo MDB, Odilo Afonso Thomé, sofreu um derrame às vésperas da convenção partidária, e viria a falecer dias depois.
Embora oposicionista à ditadura, tinha um perfil moderado e buscava sempre o entendimento. “Eu tinha um vasto relacionamento com as pessoas como empresário do ramo de bebidas, e as vezes tinha dificuldade de saber quem era MDB e quem era do Arena. Levei alguns xingões do Gabriel por atender arenistas”, brinca Musskopf, hoje com 82 anos.
Quanto a Geisel, Musskopf disse que esteve com o presidente em duas oportunidades. Uma delas, em visita às obras do Porto. “Foram conversas cordiais e respeitosas”, lembra.
Infância no Vale
A ligação de Geisel com Estrela começou através de seu pai, Wilhelm August, imigrante alemão que chegou ao município em 1883. Ernesto foi o único dos filhos que não nasceu em Estrela. Na época, a família residia na Serra. Mesmo assim, o batizado ocorreu na Igreja de Linha Frank, interior de Westfália.
A família viveu em Novo Paraíso durante parte da infância de Geisel. Ele chegou a estudar no Colégio Martin Luther, antes de trocar o interior pela capital. Com 14 anos, ingressou no Colégio Militar de Porto Alegre, onde deu início à sua trajetória no militarismo. Contudo, o casamento ocorreu em Estrela, na antiga Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB).
ENTREVISTA
“Geisel sustentou o governo com medidas que, ora abrandavam, ora fortaleciam a ditadura”
Historiador e professor Mateus Dalmaz analisa o contexto político que envolveu Ernesto Geisel durante o regime militar. Entre uma das ações de seu governo, esteve a revogação do AI-5. Apesar de sua relevância para a região, diz que não se pode ignorar a violência do Estado contra a sociedade civil durante seu mandato.
• A Hora: Ernesto Geisel foi o quarto presidente durante o regime militar. Em qual contexto ele assumiu a presidência?
Mateus Dalmaz: Geisel pertencia à ala “linha dura” das forças armadas, isto é, à parcela autoritária dos militares que decidiu estender a ditadura durante o governo Castelo Branco. A linha dura havia imprimido um tom altamente repressivo, especialmente com o AI-2 e com o AI-5 (que suspendeu direitos individuais e garantiu poderes extraordinários ao Estado). Médici fez uso do AI-5 para sufocar a guerrilha anti-ditadura e, aliado a uma campanha ufanista construiu a imagem de um governo autoritário, repressivo, violento e nacionalista. O legado de Médici para o sucessor também tem a ver números altos de inflação, déficit público e dívida externa, e uma tendência de queda do PIB. O governo Geisel tomou a decisão de que deveria promover uma abertura política do regime antes que forças de oposição se organizassem e se fortalecessem. A conjuntura do final da década de 1970, portanto, era a de desgaste do regime militar.
• Foi durante seu governo que se iniciou a chamada “abertura lenta, gradual e segura” da política nacional. Contudo, a repressão seguia. Como Geisel tratava opositores ao regime? Era conivente com mortes e perseguições?
Dalmaz: A abertura foi concebida por parte do governo Geisel. A “linha dura” dos militares, que dava suporte ao presidente, era resistente a um processo de abertura. Por isso, Geisel tentou sustentar o governo com medidas que ora “abrandavam” a ditadura (como a revogação do AI-5, em 1978), ora fortaleciam a ditadura (como o “pacote de abrir”, de 1977, que criou a figura do “senador biônico”). A violência do Estado contra a sociedade civil continuou, como a morte de Vladmir Herzog, em 1975, de Manuel Fiel Filho, em 1976, e atentados contra a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em 1976. O governo Geisel foi conivente com a repressão, pois não apenas era integrante da “linha dura”, como também dependia dela para se sustentar no poder.
• Na região, há um certo “saudosismo” de parte da população, sobretudo no governo Geisel, por sua ligação com Estrela. Isso ocorre por que as pessoas não tinham conhecimento dos crimes cometidos no regime ou a perseguição a opositores ficava restrita aos grandes centros?
Dalmaz: Em parte, o saudosismo é resultante do fato de Geisel ser gaúcho e de ter ligação com a cidade de Estrela. Porém, em grande medida o saudosismo é fruto de um desconhecimento por parte sociedade civil, durante os anos da ditadura, sobre o aparelho repressivo do Estado e sobre os números alarmantes da economia, algo que a censura tratava de encobrir. O saudosismo também é derivado da memória curta da população, que ou por desconhecimento da história, ou por não se interessar por política, ou por ambos, aceita facilmente narrativas irresponsáveis sobre o passado. Simpatizantes atuais tentam “abrandar” a repressão da ditadura militar e não mencionam a escalada inflacionária e o déficit público causados pelo regime.
Trajetória política e militar de Ernesto Geisel durante a ditadura
1964
Após o golpe de 1964, foi nomeado chefe da Casa Militar pelo presidente Humberto Castelo Branco. Posteriormente, seria ministro do Superior Tribunal Militar;
1967
Com a eleição do marechal Costa e Silva para a presidência, Geisel sai do primeiro escalão. Ele integrava um grupo de militares castelistas que se opunha à candidatura dele;
1968
É publicado o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), que resultou no fechamento do Congresso Nacional, cassação do mandato de políticos opositores, censura da imprensa, aumento da repressão e uso da tortura como instrumento de Estado;
1969
No governo de Emílio Médici, Geisel volta a ganhar espaço e toma posse na presidência da Petrobras. Seu irmão, o estrelense Orlando Geisel assume o Ministério do Exército;
1974
Ganha o apoio de Médici e é lançado candidato à presidência pelo Arena. Vence Ulysses Guimarães, do MDB, na eleição indireta. Em seu mandato, inicia o processo de abertura política no país, de forma “lenta, gradual e segura”;
1975
Inicia a construção do Porto de Estrela, obra que teve participação decisiva de Geisel. No mesmo ano, ocorre a morte do jornalista Wladmir Herzog, um dos crimes mais lembrados do período do regime militar;
1977
Inaugura o Porto de Estrela. Por conta da morte do sogro, Geisel não vai à solenidade. No mesmo ano, demite o general e ministro do Exército, Sylvio Frota, integrante da “linha dura” da Forças Armadas, em tentativa de golpe do ex-aliado; No mesmo ano, fecha temporariamente o Congresso Nacional, para manter a maioria governista no Legislativo.
1978
Cumprindo promessa de abertura, Geisel extingue o AI-5 e abre caminho para a anistia política, que seria assinada no governo de João Figueiredo. No mesmo ano, é inaugurado o Viaduto V-13, em Vespasiano Correa, obra iniciada e concluída em seu governo.
1979
Deixa a presidência. Manteve influência sobre o exército ao longo da década seguinte, mas retirou-se da vida pública. Sua última atuação em cargo foi na presidência da Norquisa, empresa ligada ao setor petroquímico.