“Ele sempre comentava que achava bonito o gesto da doação e caso acontecesse alguma coisa, gostaria de ser dador”, conta Geneci Bergonci Tittello, 52. Ela perdeu o marido, Dirceu Mocelin Tittello, para um acidente em julho deste ano. Após o diagnóstico da morte encefálica, a família autorizou a doação dos dois rins e do fígado, que serviram para salvar a vida de três pacientes do Hospital Bruno Born (HBB).
Nico, como costumava ser chamado, viveu em Lajeadinho, no interior de Boqueirão do Leão. Era agricultor e sempre trabalhou no cultivo do fumo. Também era apaixonado por motos e, na propriedade, tinha cerca de 20 km de trilha que sempre manteve em ordem.
No dia do acidente, 1º de julho deste ano, ele saiu perto das 15h30 para cortar uma árvore, parte da limpeza desta trilha. Quando o tronco caiu, Geneci, alarmada pelo barulho, foi ao encontro de Nico e o viu desacordado. A árvore havia o atingido na cabeça.
“Ele foi levado para o hospital Santa Isabel de Progresso para receber os primeiros socorros”, conta ela. Algum tempo depois, foi transferido para o HBB em estado gravíssimo. No sábado do dia 3, foi comunicado à família a morte encefálica de Nico.
Em meio ao luto, a família teve que decidir pela doação ou não dos órgãos do agricultor. “Foi um momento muito difícil saber que não havia mais o que fazer para sua recuperação”, conta Geneci. “Mas saber que ele salvou a vida de outras pessoas, como era de sua vontade, é gratificante”, completa.
A família recebeu a notícia de que o rim esquerdo foi transplantado em um pacientre de 30 anos do sexo feminino. O direito foi para um homem de 57 anos, e o fígado, para um de 67.
Como funciona a doação de órgãos
O procedimento de doação de órgãos foi feito no HBB, por meio da Organização de Procura de órgãos e Tecidos (OPO6), que atua na entidade desde 2010, nas regiões do Vale do Taquari e Centro-oeste.
De acordo com a enfermeira coordenadora Adriana Calvi, a legislação brasileira apenas permite o transplante de órgãos a partir de doador vivo para receptor da mesma família, para evitar a comercialização de órgãos e outros problemas éticos posteriores.
“Deve existir compatibilidade sanguínea e de sistema imunológico entre doador e receptor e a retirada de um órgão ou parte dele não deve causar prejuízo excessivo para o doador vivo”, destaca a enfermeira.
Em outros casos, o doador deve ter apresentado morte encefálica. A partir da declaração, é feita uma entrevista com a família para verificar se o paciente havia manifestado em vida a vontade de ser ou não doador de órgãos e se autorizam a doação.
“Hoje não é mais válido no Brasil nenhum tipo de documento de manifestação de vontade em vida. Por isso é muito importante conversar sobre esse assunto com a família”, destaca Adriana.
Rins, pulmões, fígado, coração, medula óssea, pâncreas, córneas e tecidos ósseos ou de pele são os órgãos que podem ser doados e são destinados para pessoas em uma lista de espera no estado e no país.
“Precisamos muito de doações e muitas vezes ela é feita mesmo com um doador não tão saudável, porque pode ser a única chance de vida do receptor”, explica Adriana.
Cada vez que surge um potencial doador, a central estadual de transplantes coleta dados do paciente como tipo sanguíneo, peso, estatura, idade, funções dos órgãos e coloca os dados em um programa. Assim, ele pode cruzar as características do doador com os receptores em lista e encaminha os tranplantes.
Mais de 140 transplantes em Lajeado
Quem coordena a Clinefron, com serviço de tratamento de doenças renais, é a nefrologista Nara Lessa Pimentel. Ela conta que os transplantes de rins, um dos mais comuns, iniciaram de forma modesta, mas inédita na instituição, a partir dos anos 90, e já são mais de 140 procedimentos feitos no HBB. Além desses, o hospital também possui transplante de córnea. Até hoje, foram 118 procedimentos.
De acordo com a médica, durante a pandemia, o número de cirurgias diminuiu, mas já há um movimento crescente, tanto no número de transplantes quanto doações. Ela garante que o procedimento, apesar das complexidades, é tranquilo, e qualquer paciente com saúde é apto a passar pela cirurgia.
“A partir do momento em que o paciente sai da hemodiálise, o rim dele está normal, vai poder voltar a trabalhar, que é um dos grandes diferenciais, ele volta a dirigir, praticar esportes, pode casar, ter filhos, a vida volta ao normal, mas com cuidados e orientações”, destaca.
Apesar de melhorar a qualidade de vida, no entanto, o paciente precisa tomar medicamento para o resto da vida e seguir com acompanhamento trimestral na clínica.
O 1º transplante
Em Lajeado, o primeiro transplante de rim foi feito há 19 anos em uma menina de 14. A paciente era Viviana Caumo Ferraboli, hoje com 33. Moradora de Anta Gorda na época, iniciou na hemodiálise do HBB quando descobriu que os rins pararam de funcionar e precisaria de um transplante.
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Viviane recebeu a doação de um rim do pai e foi a primeira paciente de transplante de rim do HBB, aos 14 anos
A menina, no entanto, não entrou em uma fila de espera. O pai, Luiz Carlos Caumo, com 41 anos na época, decidiu doar um rim à filha. “Ele doou para me salvar, porque sabia que com um rim ele poderia ter uma vida normal e ia melhorar a minha”, conta a filha.
Depois de alguns exames, foi conferida a compatibilidade e o procedimento pôde ser feito. “Eu fiquei muito feliz e ele também. Agradeço todos os dias pela doação”, diz Viviana.
Ela conta que depois da cirurgia, passou por grandes mudanças e consegue levar uma vida normal. Aos 22 anos, casou-se e hoje faz o acompanhamento na Clinefron, no HBB, a cada três meses. “Sou uma pessoa muito feliz e grata por tudo que meu pai fez por mim”, destaca.
Ele doou para me salvar, porque sabia que com um rim poderia ter uma vida normal e ia melhorar a minha”