“Nunca vi o salão vazio assim. É surpreendente ter clientes querendo comprar e precisando esperar.” As palavras da vendedora Rosângela Backendorf são uma amostra do cenário atual nas revendas da região.
A escassez de aço, plástico, vidro e de componentes eletrônicos interfere sobre a produção de veículos no mundo. Um dos setores mais representativos no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, com uma fatia de 7,3% de tudo o que a indústria brasileira gera, enfrenta um momento singular.
“Foi a tempestade perfeita. A pandemia junto com alguns fatos específicos: como o incêndio em uma das maiores produtoras de microchips no Japão e a queda na metalurgia chinesa. Isso tudo provocou uma grande desregulação na manufatura de veículos”, avalia o economista chefe da Federação das Indústrias do RS (Fiergs), André Nunes de Nunes.
Como resultado, a indústria automotiva reduziu a produção. Começou em abril do ano passado, com alteração nas linhas das fábricas, inclusive com suspensão dos trabalhos devido à chegada do coronavírus. Naquele período, também se percebeu uma queda na demanda por veículos novos.
“Havia muita incerteza sobre o comportamento do cliente. As pessoas estavam mais em casa, guardando dinheiro. Não tínhamos ideia que a procura voltaria com tanta intensidade”, conta o gerente de vendas de uma concessionária de Lajeado, Valdir Constantin.
Em junho, a produção de veículos no país foi 13,4% menor que em maio. A oscilação faz com que as entregas de pedidos para carros zero quilômetro varie de 30 até 150 dias. “Nem sei o que dizer para o cliente. A pandemia nos ensina que é preciso mais paciência”, destaca Constantin.
Passados 15 meses, o setor não retomou o patamar de antes da pandemia. Mesmo com a recuperação econômica em curso, os semicondutores estão em falta. Segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) entre 100 mil e 120 veículos deixaram de ser produzidos no primeiro semestre deste ano por causa da escassez dessas peças.
Metade da produção
O uso da capacidade de fabricação está em 50%. No RS, há indústrias com linhas suspensa. “Retomar os números pré-pandemia é um problema sério, muito complexo. Leva meses, até anos, pois depende-se de muitos fornecedores”, relata o diretor de outra concessionária de Lajeado, Flávio Meneguizzi.
Essa peculiaridade do modelo de fabricação automotiva faz com que a expectativa de normalidade seja só para 2022. “Os analistas erraram. Com aquelas previsões pessimistas. Todas as indústrias trabalharam em cima disso, o que não se concretizou. Agora vemos que a economia reagiu melhor do que se imaginava”, avalia.
De acordo com ele, há uma cultura do consumidor de sair da loja com o carro novo no mesmo dia. Como impacto, há também uma queda na oferta de seminovos e usados, pois entram na negociação na troca. “Inverteu toda a lógica. Agora há mais demanda do que oferta”, diz Meneguzzi.
Alta nos preços
O mercado internacional, com a desvalorização do real e a escassez de insumos aumenta os preços dos veículos novos. Já com a maior demanda sobre seminovos e usados também há um encarecimento dos produtos.
Segundo estudo da consultoria Kelley Blue Book Brasil (KBB), os usados tiveram uma alta de 13% no primeiro semestre. O levantamento considera os veículos que possuem entre quatro e dez anos de uso.
Diretor de uma empresa em Lajeado e delegado regional do Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos, Rogério Wink, reforça a consequência da lei da oferta e da procura. “Com menos carros novos, caiu o número de seminovos no mercado. Como há demanda, o preço sobe.” Mesmo com uma regularização do segmento, Wink não acredita que os preços voltem ao patamar pré-pandemia.
Mais de oito meses de espera
Além do quadro para veículos particulares, quando se olha para os caminhões, o desequilíbrio parece ainda maior. Algumas transportadoras aguardam oito meses para receber um novo veículo. Tal condição obriga uma revisão dos planos de expansão e troca da frota, relata o diretor de uma empresa, Leonício Schussler.
“Deixamos de crescer, pois faltam caminhões. Nosso plano era trocar 50% da frota. Isso não será possível.” Com 320 veículos, a nova estratégia é conseguir pelo menos 30% de caminhões novos até o fim do ano. “Não sabemos se vamos conseguir. Temos compras acertadas que ainda não chegaram.”
Vice-presidente do Sindicato das Transportadoras (Setcergs) e empresário do segmento, Diego Tomasi alerta: “vai faltar caminhão no segundo semestre.” Essa falta, diz, vai provocar aumento nos preços da logística, frente ao cenário de crescimento da produção nacional para os últimos seis meses de 2021.
“O momento é muito desafiador. Primeiro é o custo do caminhão. Está 40% mais caro do que antes da pandemia. Agora, mesmo pagando, não há garantia de entrega. Será um gargalo logístico preocupante.”
ENTREVISTA
André Nunes de Nunes – economista-chefe da Fiergs
“Não haverá uma estabilização antes da metade de 2022”
O caminho para a volta da normalidade nos indicadores de produção depende do mercado internacional. Com insumos em falta e mais caros, há pouca condição para queda nos preços, avalia o economista.
A Hora – De que maneira a indústria veicular se desequilibrou?
André Nunes de Nunes – O segmento foi muito afetado pela desestruturação da indústria. Estudo global mostra que de 5 a 7 milhões de unidades foram perdidas por conta das restrições. Como reflexo disso, na ponta, o consumidor paga mais pelos veículos. Precisamos entender que para montar um veículo, há matérias-primas de diversos setores. Borracha, vidro, plástico. Todas cadeias afetadas e com vários gargalos ao longo dos últimos 16 meses.
A Hora – Por que a indústria automotiva demora mais para retomar a produção?
Nunes – Por ser uma cadeia produtiva mais longa, com muitos setores envolvidos, há mais demora. Junto com isso, a indústria tem poucas certezas sobre a demanda futura. Precisa ter ter uma segurança em termos de suprimento de insumos, pois não há como pular etapas. Quando um automóvel entra na linha de produção, é preciso ter tudo o que ele precisa.
Isso sem contar a relação de mercado, das pessoas em casa. Não se sabia como ia se comportar o mercado nos anos seguintes. Muitas fábricas não conseguiram prever que voltaria mais rápido a normalidade. Hoje é fácil de dizer. Mas olhando para trás, não havia como ter certeza de nada.
A Hora – Há perspectiva de uma volta a normalidade? O que precisa acontecer para tanto?
Nunes – Quando avaliamos a fabricação, em especial os dados sobre o licenciamento de veículos novos, vemos um crescimento na comparação 2020 com este primeiro semestre. Agora, quando se olha para o período pré-pandemia, para 2019, ainda estamos no negativo.
Para vermos alguma retomada, não adianta avaliar apenas a atuação nacional, pois é um mercado mundial. Será uma melhora gradativa, mas não haverá uma estabilização antes da metade de 2022. Agora, há uma questão ainda mais difícil de responder. Eu gostaria de saber se haverá queda de preço quando houver normalização. Essa é a grande dúvida para todos neste momento.