Me intriga a diferença entre a vida e a morte. A plenitude e a duração de uma vida, em contraposição à incerteza e ao paradigma da morte, o portal para a eternidade. Uma pessoa que há pouco você viu, vicejante, conversando, correndo, comendo, bebendo, chorando, acariciando, no dia seguinte você é convidado a vê-la no velório, resumida àquele corpo, descorado, inerte, agora sem função, que se desfará em poucos momentos: ou pela cremação ou pela ação dos vermes e de outros agentes. É uma situação igualitária insuperável que nivela o anônimo e sofrido morador de rua, o cidadão comum como nós, o rico abastado, a figura pública ímpar. Naquele momento, quando despojados da vida, seus corpos inertes igualam a todos.
Apenas recentemente presenciei o momento, a linha tênue que separa a vida da morte em pessoa muito próxima, muito cara. Estava ao lado, observando a um palmo o seu rosto quando expirou. Teve um lampejo de expressão como se alguém a beliscara e partiu. Frágil a linha que separou uma existência de décadas, que surgiu bebê e transformou-se numa pessoa de realizações, vivenciadas nos mais diferentes ambientes econômicos, políticos e sociais e que, num repente, nos deixa apenas um corpo inerte, fadado ao desaparecimento. É a mesma trajetória de bilhões de pessoas, mesmo que com vidas diametralmente diferentes, fruto de diferentes circunstâncias e decisões, mas igualadas frente à morte. Será a alma esta linha tênue?
Estas ilações me incomodam, provocam e desassossegam há muito tempo, mesmo que, particularmente, esteja alicerçado em crença espiritual bem clara a respeito.
As tecnologias à disposição, o condicionamento a que os meios de comunicação submetem, cada vez mais, as pessoas, o consumismo e o materialismo superando a espiritualidade, os laços familiares a desagregar-se, a velocidade de tudo, enfim, as colocam num roldão em que os dias – a vida, enfim – parecem voar cada vez mais céleres.
Os ambientes político, econômico, social e de jogo de interesses parecem a brincadeira conhecida por “cabo de guerra”, cada qual nos puxando para um lado, até que a corda arrebenta. Acontece que a corda somos nós. E aí, milhões e milhões são levados à desesperança, numa vida que lhes parece erroneamente eterna, sem aperceberem-se ser algo efêmero, a ser degustado momento a momento.
Quantos e inúmeros instantes felizes estas pessoas deixam de reconhecer e de viver, por considerá-los efêmeros, pensando que a felicidade, para existir, deveria ser mais duradoura? Não tiveram a percepção que a felicidade é constituída de momentos, às vezes tão breves que, no mar da vida, são meras gotas. Gotas de felicidade.
Às vezes um sorriso, por vezes um papo amigo, uma carícia e um beijo – prolongados ou fortuitos. A conversa com a pessoa amada, um nascer do sol estonteante, a sensação gostosa do pé descalço na grama úmida. O almoço em grupo, o gostoso suor da atividade física, os momentos tranquilos da fé em um ser superior. Quem sabe uma música, um momento de amor intenso, uma gargalhada, a criança que embalamos ou com que brincamos, o animal de estimação que acariciamos, o peixe que fisgamos, o texto que escrevemos, o amor que amamos, o olhar malicioso que flagramos.
Enfim, são tantos os momentos disponíveis para superar a CPI e a imprensa que nos irritam, a ansiedade que as tendências políticas nos provocam, as questões regionais, estaduais e nacionais, do cotidiano que nos afligem. Tudo, de repente, nos abandonará com o rompimento da tênue linha que separa a vida da morte, sem dar-nos, ao menos, tempo de nos arrependermos das gotas de felicidade que deixamos se esvair por dentre os dedos.