A Polícia Civil busca explicar os motivos que levaram uma mãe a tentar o suicídio e o homicídio da própria filha. Em uma investigação prévia, a motivação seria vingança contra o ex-marido.
Antes da colisão da tarde dessa segunda-feira, um casamento marcado pelo sentimento de insegurança, ciúmes e possessão. Essa era uma das marcas do relacionamento, na visão de familiares.
Como resultado, a mulher provoca um acidente na BR-386. A principal prova está em um vídeo, com pouco mais de 20 segundos. Nas imagens, a mãe fala para a menina se despedir do pai, pois ambas morreriam.
A gravação foi enviada para o ex-marido. “Assim que ele recebeu, teria saído em busca de ajuda, mas não deu tempo de evitar”, diz a delegada Márcia Bernini. Momentos depois, o acidente na BR-386, nas proximidades do bairro Olarias. Eram perto das 14h45min.
A policial estava de plantão e fez os primeiros encaminhamentos de apuração. Inclusive com o pedido de prisão preventiva da mulher de 34 anos. “Identificamos que era uma tentativa de homicídio. Pelo que o pai disse, a motivação seria o fim do relacionamento.”
Os próximos passos da polícia é para apurar as circunstâncias do crime e confirmar qual foi a motivação. Em seguida, buscar informações sobre a sanidade mental da mãe. Após esses movimentos, o inquérito será repassado ao Ministério Público.
“A criança só gritava. Estava em pânico”
Cristiano Kappes trabalha em uma empresa que fica a pouco mais de 20 metros do local do acidente. Ele foi uma das testemunhas que tirou a menina do carro. “O único lugar que não estava destruído era onde ela estava”, lembra.
Alguns instantes antes da batida, a buzina do caminhão chamou a atenção dele. “Aqui onde trabalho é comum ouvir as carretas. Mas foram uns 12 segundos de buzina, sem parar. Logo depois, três estrondos muito fortes.
Queríamos tirar ela dali o mais rápido possível. Não queríamos deixar ela ver a mãe do jeito que estava.
Em seguida, ele e outras pessoas correram ao local. Quando percebeu que havia uma criança no veículo, se esforçaram para tirá-la de lá. “A criança só gritava. Estava em pânico. Não chorava. Eram gritos muito altos. Foi desesperador.”
Ainda assim, perceberam que ela estava bem. “Queríamos tirar ela dali o mais rápido possível. Não queríamos deixar ela ver a mãe do jeito que estava.”
Fato e consequência
O acidente
A colisão envolveu três veículos e aconteceu no quilômetro 345 da BR-386 nessa segunda-feira. O Fiat uno Vermelho, com placas de Cruzeiro do Sul, bateu de frente com uma carreta de Anta Gorda. Em seguida, uma caminhoneta Tucson, de Ijuí, atingiu a traseira do Uno.
A condutora do veículo de Cruzeiro do Sul ficou presa nas ferragens e foi retirada pelos bombeiros. Ela estava inconsciente, com traumatismo craniano e fraturas. Os condutores dos outros veículos não tiveram lesões graves.
O inquérito
Após as primeiras apurações, o delegado Márcio Moreno assume a coordenação do inquérito. De acordo com ele, até a tarde de hoje, 70% da peça acusatória estará finalizada. “Temos de trabalhar com atenção e muito cuidado. Não se trata de apenas uma tentativa de homicídio. É um acidente com outras vítimas também.”
Pelo Código de Trânsito, em caso de acidente com morte, a tipificação penal é de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Na colisão de segunda, há indicativos de que houve ação proposital da condutora. “Temos a premissa de crime doloso contra a vida. Nossa apuração parte disso.” Conforme o delegado, a polícia aguarda a manifestação judicial sobre o pedido de prisão preventiva. “A investigada está em estado grave e trabalhamos o mais rápido possível para darmos uma explicação pública para o que aconteceu”, destaca Moreno.
Pelo prazo legal para finalização do inquérito, há duas possibilidades. Em caso da investigada estar presa, a PC deve entregar o processo em dez dias. Do contrário, a peça deve ser entregue em até 30 dias. “Sem dúvida posso afirmar que vamos terminar o inquérito em menos de um mês.”
Guarda da criança
Para o promotor de Justiça da Infância e Juventude, Sérgio Diefenbach, o vídeo antes do acidente provocam reações da sociedade. “É um ato absolutamente condenável e reprovável. É preciso analisar a conduta desta mãe, ver o estado mental dela para ter essa explosão de raiva.”
O fato das imagens terem sido difundidas também é motivo de sofrimento, avalia o promotor. “Não só para a família, mas para todos. Infelizmente temos situações limítrofes de saúde mental. Assim como pedimos para não compartilhar suicídios, esse vídeo também não é saudável. Essas ideias propagadas pode ser um estímulo para outros.”De aco
rdo com ele, é preciso acompanhar o quadro de saúde da mãe. “Caso sobreviva, mesmo se tiver qualquer movimento de reaver a guarda da criança, não há a menor chance.”
Entrevista
Sérgio Guimar Pezzi – Psicólogo e psicanalista
• Sofrimento para toda a família é acentuado pelo compartilhamento do vídeo, analisa o psicólogo e psicanalista. Para ele, apesar da pouca idade, a criança precisará de acompanhamento profissional para superar o trauma.
“As frases ditas pela mãe são de uma violência atroz”
• As informações de familiares, em especial de pessoas próximas ao ex-marido, dão conta de sentimento de possessão e ciúmes da mulher. Esse tipo de relação pode ter ocasionado um surto por parte dela?
Para fazer qualquer tipo de análise sobre isso, precisamos ter muita cautela. Não tenho detalhes da relação do casal. Assisti o vídeo, é terrível, sem dúvida. Mas é preciso fazer algumas ressalvas. Essa filmagem é um fragmento da vida dessa pessoa.
Agora, não vejo que tenha sido um surto, pois se trata de algo pensado, com o intuito de provocar o sofrimento do pai. A vontade dela era causar dano, sentimento de horror e de culpa para esse pai, por meio do filicídio.
• O vídeo foi compartilhado e chegou a muitas pessoas. Isso causou reação. Quais impactos disso tudo?
É uma situação de muita tristeza. Além de ser um ato perverso, visando causar dor, temos uma espetacularização da morte. Ela faz chegar ao pai um vídeo minutos antes da tentativa de suicídio e de filicídio. É algo que circula por toda a comunidade local e até mundo afora.
Me impressiona essa exacerbação narcisística da sociedade contemporânea. No específico deste caso, temos alguém que faz da própria morte e da morte da filha um espetáculo para ser visto. Algo que potencializa ainda mais o sofrimento.
Além de ser um ato perverso, visando causar dor, temos uma espetacularização da morte.
• Do ponto de vista da prevenção. Ainda que seja algo difícil de prever, há como familiares e amigos verificarem que há sentimentos doentios em meio a um relacionamento?
Quando há excesso de ciúmes e de sentimento de possessão pelo outro, é preciso buscar ajuda terapêutica. As pessoas próximas podem ajudar, ficando atentas e informarem a rede de proteção, caso seja necessário.
Há um ditado popular muito presente até hoje, é aquele: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. As pessoas se respaldam nisso para não fazer nada. Importante ficar alerta. Não se trata de invadir a privacidade, mas de preservar a vida, ajudar de verdade.
Há na bibliografia da psicanálise estudos sobre níveis patológicos do sentimento de possessão. É normal termos alguns momentos de ciúmes, isso é normal. Agora quando tomamos o outro como algo seu, em que a simples ameaça de perdê-lo leva a eliminação, isso é doentio. Temos observado que é mais comuns nos casos de feminicídio, do homem que mata. Mas também pode ocorrer o contrário. O ser humano é capaz de coisas horrorosas.
• E para a criança? O que esse fato pode acarretar nela?
Muito difícil prever. As frases ditas pela mãe são de uma violência atroz. É muito recomendável que essa criança, mesmo em tenra idade, tenha um atendimento psicoterápico. Não só o trauma do acidente, mas principalmente o que escuta da mãe, convidando-a para a eliminação, dizendo “tchau, pai”.