Poeira, adrenalina e solidariedade nas estradas do Vale

Memórias dos rallys

Poeira, adrenalina e solidariedade nas estradas do Vale

Marcados pelo companheirismo e integração comunitária, os rallys da JCI ganharam adeptos na região e, por 13 anos, reuniram pilotos de diversos municípios para se aventurarem pelos caminhos das cidades e do interior

Poeira, adrenalina e solidariedade nas estradas do Vale
Os carros recebiam números e alguns eram decorados para o evento. A largada era feita em uma rampa de madeira feita pela comissão e, a partir de 85, motos também começaram a participar (foto: arquivo pessoal)
Vale do Taquari

Os carros eram numerados e, por vezes, recebiam nomes. A lataria também era personalizada e os pilotos esperavam em fila para começar o fim de semana. Apesar da competição, o momento era de lazer para a comunidade da época. Foi neste cenário que os primeiros “Auto passeios” da JCI Lajeado surgiram no início da década de 80 e ganharam as estradas do Vale do Taquari e região.

Um dos pioneiros da brincadeira, que ficou conhecida como o Rally da JCI, e ganhou força com o passar dos anos, foi Américo Martinho Canelas de Assunção, 80, o “Português”, como costuma ser chamado. Nascido em Portugal, foi no Brasil que constituiu família e se integrou à entidade, à época chamada Câmara Júnior. Foi ele quem idealizou o primeiro Rally, em dezembro de 1983, para angariar fundos para a Vovolar. Já na estreia, o evento contou com 30 inscrições.

“Fizemos o projeto, mas eu não conhecia nada da região, então começamos a procurar formas de organizar o evento. Um mês e meio depois estava pronto”, lembra Américo. Naquele ano, a saída foi em frente à prefeitura de Lajeado. Os pilotos tinham que atravessar o rio de balsa em Marques de Souza e seguiam por Picada Vinagre e pelas redondezas de Progresso.

“Terminado o Rally, tinha uma prova de perícia que fazíamos para brincar. O resultado só sairia no dia seguinte. Nós fazíamos os cálculos e o resultado seria anunciado em um almoço, onde servimos uma moqueca de peixe que eu e minha esposa Lia fizemos”, relata o português.

Lia Kunrath participou do rally e lembra das histórias durante o trajeto (foto: Bibiana Faleiro)

Regularidade X Velocidade

O “Auto passeio” não exigia velocidade, e sim regularidade, e era diferente dos rallys tradicionais. Para ganhar, era preciso passar no tempo certo pelos Pontos de Controle (PCs), onde a comissão fiscalizava. “Tinha gente que errava o caminho, daí via o outro passando e seguia. Os pilotos tinham que controlar o tempo para cada trajeto”, explica Américo.

Os competidores se dividiam nas categorias jipe, camionete 4×4 e carros de passeio, separados ainda em profissionais e aspirantes. Geralmente eram dois competidores por carro. Um pilotava e o outro “ditava” a direção, seguindo um mapa feito pela comissão. Esse mapa indicava os quilômetros a serem percorridos antes de virar à esquerda ou à direita e a velocidade do percurso. As pessoas tinham que calcular o tempo em que deviam fazer o trajeto até o próximo PC. Quem passasse um segundo antes ou depois, perdia pontos. “Dava um trabalhão esse cálculo no final”, conta Américo.

Alguns carros também levavam o famoso “Zequinha”, que ficava atrás acompanhando os participantes. Ele era responsável pela água e, vez ou outra, costumava palpitar.

Histórias de competidor

A esposa de Américo, Lia Kunrath, 73, também competiu, pela categoria feminina. Naquele ano, era ela quem dirigia e a cunhada fazia a “navegação”. O irmão ia no banco de trás para aproveitar o passeio. No caminho, em uma estrada de Colinas, o carro teve problemas. “Caiu o cano de descarga, alguma coisa assim soltou e tinha uma criança com um caminhãozinho na rua. Não tivemos dúvidas, pedimos a cordinha do caminhão do menino, meu irmão pegou e amarrou. O caminhãozinho nos salvou”, recorda Lia.

Outra história que ela lembra foi da dificuldade para subir uma estrada no Morro Gaúcho, em Arroio do Meio. Ela dirigia um Fiat 1100. Para resolver o problema, o irmão sentou no capô do carro enquanto Lia acelerava.

O evento foi palco de muitas aventuras. Em uma das edições, um dos carros atolou em uma área rural e os participantes pediram dois bois emprestados para tirar o veículo do atoleiro. Ganhar a prova nem sempre era o mais importante, e muitas pessoas gostavam mesmo era da brincadeira.

Laurinho gostava de vencer e profissionalizou o carro para as provas (Foto: Bibiana Faleiro)

Pelo trajeto do Rally

Organizar o Rally não era fácil. Pelo contrário, com o tempo, passou a exigir de seis a oito meses de preparação. A comissão tinha que conhecer os caminhos passando pelo interior, marcar as distâncias e pedir autorizações. “Tu tem que ir por todos os lados, marcar todas as curvas, o tempo. Depois a gente via se a estrada era boa ou ruim e dávamos as velocidades”, explica Américo.

Quem também esteve na organização foi Laurinho Bündrich, 60, que era também competidor. “Quando comecei, passei a profissionalizar meu carro. Nós tínhamos hodômetros parciais, tudo o que um carro de rally precisava na época, porque eu ia pra ganhar”, conta.

No início, o Rally era como uma gincana com provas durante o trajeto. Entre elas, pegar uma maçã com a boca em um recipiente com água, colocar uma linha em uma agulha, ou mesmo martelar uma pequena tachinha com uma marreta. Mais tarde, passou a ter características próprias de um rally de regularidade e alguns pilotos se profissionalizaram. Na terceira edição, a JCI organizou também o primeiro Bicicross infantil e o primeiro Moto passeio, que teve Laurinho como um dos pilotos, nos dias 15, 16 e 17 de novembro de 1985.

Uma das características do Rally da JCI eram os “pega-ratões”. “Durante o caminho, alguns trechos saíam do mesmo lugar. Um posto, por exemplo, a primeira vez se passava pela esquerda, fazia toda a volta e chegando lá de novo, era preciso virar à direita. Quando tinha algum piloto meio perdido, ele só seguia o carro da frente, ia direto para o segundo trajeto e chegava no próximo PC com dez minutos de antecedência”, conta Laurinho.

Os competidores recebiam prêmios de participação. Mas outras premiações também eram distribuídas para os primeiros colocados, os destaques e as personalidades. “Tinha o tonto, o perdido, o azarão, o contramão, aquele que sempre estava na direção errada”, lembra Laurinho. O Rally foi realizado até 1990 pelos veteranos.

André Kronbauer, com o microfone na mão, na organização da oitava edição do Rally (foto: arquivo pessoal)

Anos mais tarde e o fim

Depois de alguns anos sem evento, em 2002 o Rally voltou a ser organizado pela JCI, na sua oitava edição, enquanto André Kronbauer, 52, era presidente da entidade. “O objetivo do projeto sempre foi desenvolver lideranças dentro do grupo, esse é o propósito da JCI, e o ‘Auto passeio’ também foi importante porque trouxe muitas pessoas de todo o Vale”, conta Kronbauer. Além disso, o evento também servia para arrecadar alimentos e valores para instituições e era um momento de lazer para a comunidade.

As provas, que duravam dois dias, começavam aos sábados de manhã. Durante a noite, os cerca de 500 participantes e comissão organizadora se reuniam em um município para jantar e pernoitar. No dia seguinte, era oferecido um café da manhã, muitas vezes patrocinado pelas prefeituras, que aproveitavam para divulgar os município, e o Rally continuava no domingo.

“A gente aprendia e se divertia ao mesmo tempo, conhecia diversos lugares e amigos. Também conhecíamos os pontos turísticos do Vale do Taquari”, comenta Kronbauer.

Os trajetos passavam por asfaltos nos centros das cidades, por rodovias e estradas de chão, em lugares como Forquetinha, Progresso, Boqueirão do Leão, Arroio do Meio, Estrela e tantos outros no Vale do Taquari, até 2008, quando teve a 13ª e última edição.

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