Do abandono a uma nova visão de futuro

Campo renovado

Do abandono a uma nova visão de futuro

Entre a década de 80 até o início dos anos 2000, a região enfrentou um processo de êxodo rural acelerado. Programas de financiamentos, melhorias na infraestrutura e garantia de renda reaproximam os jovens das propriedades. Pesquisa da UFSM indica que 80% das pessoas de 18 a 30 anos, filhos de agricultores, pretendem seguir o trabalho dos pais

Do abandono a uma nova visão de futuro
Jaíne Sprandel tem 23 anos e divide com os pais o trabalho e a gestão da propriedade em Teutônia / Crédito: Divulgação

Em busca de uma vida melhor, Roberto Carlos Birck, 35, deixou o meio rural. Foram quase cinco anos de trabalho assalariado na cidade. Sem conseguir atingir os objetivos previstos devido ao custo de vida, decidiu voltar.

O ano era 2010. Nos primeiros meses de retorno, ficou na propriedade do pai da esposa, Josieli da Rosa, 32. Ajudavam no trabalho até que encaminharam um pedido de financiamento pelo Banco da Terra para a compra de uma área no interior de Canudos do Vale.

Nos pouco mais de 6 hectares, produzem leite e pepinos. Com boa rentabilidade e mais qualidade de vida, o casal nem pensa em voltar à cidade. “Com crédito, assistência técnica e garantia de mercado enxergamos um futuro promissor. O nosso sucesso depende da dedicação e do trabalho. Temos as ferramentas para tornar o negócio lucrativo e sustentável”, afirma o agricultor.

A história de Birck e Josieli tem se repetido pelo interior do Vale do Taquari. Muito diferente do passado, quando a região enfrentava um processo de êxodo rural acelerado, explica o doutor em agronegócio e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Adriano Lago.

Esse abandono do meio rural pelos filhos de agricultores ocorreu na região entre os anos de 1980 até o início dos anos 2000. “Foi um período em que havia pouca perspectiva para os jovens. As famílias eram mais numerosas, em propriedades pequenas, com poucas condições de sustento. Os próprios pais incentivavam os filhos a sair”, destaca.

“A imagem do agricultor empobrecido, da desvalorização da agricultura tem ficado para trás. Hoje há mais confiança de que é possível melhorar de vida na propriedade”, analisa Lago. Algumas das políticas macro que auxiliaram neste novo momento são os programas de crédito governamental, tanto para as safras, para investimento nas moradias, compra de áreas e para tecnologias de produção e manejo.

 

Pesquisas indicam um novo movimento, agora de retorno e de permanência. Muito disso está ligado ao acesso às tecnologias e oportunidades de negócio no meio rural / Crédito: Filipe Faleiro

O que faz o jovem a ficar na propriedade?

Além das políticas macro, há questões que passam pela infraestrutura (energia, internet, estradas) além da relação entre pais e filhos, explica o professor Lago. Para tentar responder quais os motivos centrais para garantir a sucessão rural, o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Agronegócio da UFSM, entrevistou 60 agricultores, de 18 a 30 anos, em seis municípios do Vale do Taquari.

O estudo indica que 80% dos jovens pretendem permanecer na atividade agropastoril. Esse percentual, diz Lago, tem ligação com três aspectos fundamentais, muito ligados ao ambiente familiar.

“Trabalho, gestão e renda. No primeiro, os jovens já estão inseridos. Eles ajudam a família no dia a dia da propriedade. Na gestão, se verifica o nível de participação na tomada de decisões e nas estratégias do negócio rural. O último ponto, diz respeito a autonomia, de ter o próprio dinheiro, de poder fazer o uso dessa receita como quiser”, detalha do pesquisador.

O levantamento foi feito a partir de famílias associadas a cooperativa Languiru, de Teutônia. “Escolhemos quatro cooperativas em diferentes regiões gaúchas. Cada uma em uma área de atuação.”

De acordo com Lago, algumas particularidades do Vale do Taquari contribuem para esse alto índice de sucessão. Entre elas, a proximidade das propriedades da área urbana, a disponibilidade de sinal de internet e telefone, e também a presença de escolas rurais.

Pela pesquisa, 98% dos entrevistados contam com acesso de boa qualidade à internet. “Em que pese algumas áreas que sabemos ter dificuldades neste acesso, o Vale do Taquari tem uma situação mais favorável do que a área central ou sul do Estado, por exemplo. Isso faz com que se tenham alguns serviços que antes só eram possíveis nas cidades.”

Vale passou por um período de êxodo rural intenso entre a década de 80 até início dos anos 2000 / Crédito: Arquivo A Hora

“Não troco o campo por nada”

Jaíne Sprandel tem 23 anos. Mora em Teutônia com os pais. Na propriedade de 9 hectares, produzem leite. Ela auxilia tanto no trabalho quanto na administração. Formada em Engenharia Civil, decidiu continuar no interior.

“Passamos por momentos bem difíceis. Meu pai trabalhava na cidade, e a minha mãe ficava cuidando da propriedade. Minhas irmãs e eu víamos a dificuldade, e escutávamos que o melhor seria sairmos e buscar outras atividades.”

As duas irmãs mais velhas fizeram esse caminho. Jaíne não. “Me formei, e vi que não era o que queria. Desde pequena, sempre gostei daqui. De trabalhar no campo.” Com as oportunidades de investimentos, no manejo e em tecnologia, houve melhores perspectivas.

“No passado, meus pais não tinham o acesso a informações que temos hoje. Vimos que é possível se organizar, manter a propriedade, ter lucro e se sustentar”, frisa. Na família dela, todas as funções são divididas, inclusive as decisões. “Meus pais querem essa participação. Nós conversamos, e decidimos juntos.”

A renda também é repartida, em frações iguais para os três, pai, mãe e para a jovem. “Pegamos o lucro, e cada um fica com uma porcentagem. Isso é importante, pois se trata do reconhecimento do trabalho.” Na avaliação dela, morar no interior hoje não se difere de estar nos centros urbanos. “Eu tenho tudo o que preciso aqui. Na verdade, tenho mais qualidade de vida. Não troco do campo por nada”, enaltece Jaíne.

Função do cooperativismo

A pesquisa da UFSM destaca que programas, debates e cursos voltados à sucessão rural desenvolvidos pelas cooperativas também são ferramentas importantes de estímulo à permanência do jovem.

“Anos atrás, essa não era uma preocupação das cooperativas. Se via o êxodo rural como sendo um processo natural, pela desvalorização da agricultura, e que o governo era o responsável por mudar isso”, diz Lago. A Languiru, afirma o pesquisador, foi uma das precursoras em desenvolver projetos e ações para tentar manter o jovem no campo.

A própria Jaíne Sprandel passou por essa formação. “Foi muito legal. Um ano e meio de curso. Lembro que o professor colocava os filhos de um lado e os pais de outro, e ali conversávamos. Isso trouxe entendimento. De que o filho não pode querer revolucionar, mudar tudo, e que os pais têm uma forma de trabalho que, aos poucos, pode se adaptar aos novos tempos.”

O gerente de Comunicação, Marketing e Cooperativismo da Languiru, Alexandre Schneider, conta que antes de analisar os resultados das ações, é preciso ressaltar o seu propósito. “Não temos dúvida da necessidade destes programas, pois está em curso uma reestruturação nas propriedades. Havia um envelhecimento e isso vem se alterando”, realça.

Para medir esse aspecto, destaca a faixa etária dos associados. Pelos dados, há uma redução da idade média que vem desde 2004. Naquele ano, a maioria dos associados tinha mais de 57 anos.

Esse número caiu para 52 em 2007. Pela análise mais recente, de 2020, a média de idade dos associados da cooperativa está em 49,9 anos. “Para nós, essa é uma amostragem de que as pessoas estão assumindo a gestão das propriedades cada vez mais jovens”, resume Schneider.

Pesquisa da UFSM entrevistou 60 jovens agricultores de sete municípios. Seis no Vale do Taquari. São: Teutônia, Westfália, Colinas, Estrela, Poço das Antas, Paverama e Imigrante. De outra região, foi Maratá. Todos associados à cooperativa Languiru.

ACESSOS AOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

98,3%
Acesso a internet

76,6%
Sinal de celular em funcionamento

63,3%
TV via parabólica

41,6%
TV por assinatura

RENDA

31,6%
Jovem recebe comissões sobre a produção ou venda de produtos

21,6%
Sucessor fica com o dinheiro da atividade que gerencia

18,3%
Sucessor tem salário fixo

18,3%
Sucessor pede dinheiro aos seus pais sempre que precisar

5%
Caixa único na propriedade. Uso conforme necessidade

3,3%
Sucessor tem renda urbana

1,6%
Pais aposentados ou falecidos, em que o jovem recebe toda a renda agrícola

TOMADA DE DECISÕES

58,3%
Gestão dividida entre jovem e pais

20%
Sucessor não tem autonomia. Pai toma as decisões

15%
Jovem tem autonomia de decidir

1,6%
Decisões divididas entre o jovem, pai e irmãos

1,6%
Pai e avô decidem

1,6%
Sucessor tem autonomia sobre investimentos e uso do dinheiro

1,6%
Sucessor tem autonomia em alguma atividade de propriedade

EXECUÇÃO DAS TAREFAS

65%
Jovem e o pai dividem de forma igualitária o trabalho

13,3%
Sucessor lidera o trabalho e os pais ajudam

8,3%
Pais lideram o trabalho e o jovem ajuda

6,6%
O pai é o responsável e o sucessor auxilia

6,6%
Trabalho dividido entre o pai, o sucessor e outro familiar (avô, irmão, etc.)

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