De 1984 aos 300 mil de hoje

Opinião

Sérgio Sant'Anna

Sérgio Sant'Anna

Publicitário

Assuntos e temas do cotidiano

De 1984 aos 300 mil de hoje

Lajeado

Era uma tarde de abril e o centro da cidade do Rio de Janeiro se apinhava de gente em direção à Igreja da Candelária. A manifestação das Diretas Já estava sendo considerada a maior manifestação política já vivida no Brasil. Corria o ano de 1984 e cerca de 1 milhão de pessoas reunia-se para o comício que pleiteava as primeiras eleições diretas para presidente, após 20 anos de regime militar sem direito a voto para os executivos federal, estadual, municipal e também para senadores. Eu cursava o terceiro ano do ensino médio numa escola de classe média na Zona Norte da cidade, logo ali, há poucos quilômetros da Central do Brasil e da Avenida Presidente Vargas, onde haveria o evento. Fomos a pé, uns cem alunos, professores e até diretores. Muitos andavam abraçados e cantamos Milton Nascimento, Geraldo Vandré, Gilberto Gil. Legião Urbana ainda nem havia lançado disco, mas certamente esse movimento foi inspiração para muitas bandas de Brasília e para o rock gaúcho.

Seria simples saudosismo, lembrança de uma bem-aventurada adolescência em terras cariocas se esta sensação de conquista frustrada não batesse frequentemente à minha porta. Pois, claro, as Diretas Já não rolaram. A eleição terminou sendo indireta, realizada pelo Colégio Eleitoral. Bem, ganhou Tancredo Neves, a melhor opção diante de um Paulo Maluf. Ganhou, mas não levou. Infelizmente Tancredo faleceu antes de tomar posse e ficamos com o vice, José Sarney. Mas isso é história, deve constar nos livros da gurizada. O que me atormenta é quando a história muda, ou mudam a história.

Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, o livro de George Orwell, sinaliza muito bem as transgressões que os regimes totalitários impõem à história, manifestando controle sobre a realidade, de modo que as percepções sejam alteradas e a mentira passe a ser considerada verdade ao se tornar uma crença coletiva. Em artigo da revista Galileu, Marília Marasciulo traça um paralelo entre a publicação de Orwell e a atualidade brasileira, onde censura, redes sociais e fake news materializam espectros nefastos da nossa sociedade, como, por exemplo, aceitar duas crenças contraditórias ao mesmo tempo, mas sem noção de que se trata de uma contradição.

No livro, o Ministério da Verdade utiliza mecanismos para alterar ou destruir documentos, fotos, gravações e textos considerados inapropriados, na tentativa de dar a impressão de que algo nunca aconteceu. Qualquer semelhança com as nossas fake news ou vídeos deepfakes não é mera coincidência.

A distopia criada pelo inglês em 1949 nos parece cada vez mais atual – tanto que o título continua entre os mais lidos no mundo –, inclusive pela própria dificuldade que muitas vezes temos para entender a verdade. Ou simplesmente somos um grande objeto de manipulação ao bel-prazer dos que detêm o poder? Ou não causa estranheza metade da população brasileira ser levada a idolatrar um juiz pelas suas inestimáveis conquistas e, em algum momento, ter sua crença jogada no ralo… e a ótica ganha um novo olhar, e tudo que foi já não é mais. Que não sejam apagados os registros de áudio e vídeo das frases que desconsideraram a pandemia, menosprezando seus impactos – contra tudo que era dito no mundo, principalmente no mundo desenvolvido –, com desrespeito e truculência às normas que a medicina considera adequadas.

Em 1984 não tivemos eleições diretas, mesmo assim evoluímos muito de lá pra cá, em tecnologia, ciência, entretenimento, relacionamentos, diversidade. O fato de não estarmos preparados para a pandemia sinaliza que esse processo de evolução deve ser contínuo. Investimentos em educação, pesquisa e inovação devem ser prioridade de governos – e de empresas. Trezentos mil brasileiros mortos não podem passar incólumes, são vidas perdidas, muitas vidas. Renato Russo, que foi levado pela pandemia da Aids (até hoje sem cura), simplesmente diria: “Que país é esse?”. E tem gente ainda achando que é tudo fake.

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