Elas quebram paradigmas

dia da mulher

Elas quebram paradigmas

Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, A Hora traz histórias de mulheres que romperam tabus e conquistaram espaço em meio a profissões tipicamente dominadas por homens

Elas quebram paradigmas
Ana Paula Weiss Becker trabalha com chapeação há cerca de 17 anos e acredita na importância da mulher nesse meio. Créditos: Bibiana Faleiro
Vale do Taquari

Os bolinhos de chuva e uma térmica de café ficam dentro do barco. Assim, não é preciso tirar o caniço da água ou desembarcar para a hora do lanche. Esse é um momento em família que a pescadora Jussara Botelho, 58, vive desde criança. Em um ambiente predominantemente ocupado por homens, ela encontrou seu espaço nas águas do Rio Taquari e mostra que a mulher pode trabalhar onde quiser.

Ela nasceu no rio. Os pais eram pescadores e em uma travessia de Taquari para São Jerônimo feita com o barco da família, a mãe de Jussara que estava grávida de quase nove meses, deu à luz.

A taquariense vem de uma família de pescadores que iniciou com a avó e, ao lado do marido, João Fernando Ferrão, incentivou os filhos e netos que também criaram gosto pela atividade. A neta Maria Eduarda, 15, mora com os avós e auxilia Jussara no dia a dia pesqueiro. São as mulheres que vão para a água na maior parte do tempo.

A rotina de Jussara começa cedo. Perto das 5h ela já está no rio para retirar as redes que passaram a noite na água. Por muito tempo, a pescadora ia de bicicleta até a beira do rio. Hoje vai com a camionete antiga adaptada para levar o barco. Depois de serem roubados, ela e o marido construíram uma nova embarcação. Agora quer construir mais uma e ensinar os netos.

“Hoje em dia comprar um barco é fácil, quero ver construí-lo. Isso um dia ainda vou colocar na internet, do início ao fim. Uma mulher fazendo um barco, e essa mulher vai ser eu”, afirma.

No meio de trabalho, Jussara conta ser uma das poucas pescadoras da região. Quando ia ao rio pescar com a mãe, não tinham medo de estarem sozinhas. Mas hoje é diferente. “A gente encontra dificuldades, porque alguns pescadores não podem ver uma mulher sozinha que já vem abordar, vem com gracejos. Temos que estar preparadas para nos defendermos. Às vezes a gente tem que abandonar o que está fazendo e voltar pra casa”, lamenta. Mesmo assim, acredita que no meio da pesca hoje elas são mais valorizadas, já que possuem carteira registrada como pescadoras.

Nem sempre de unhas feitas

Ana Paula Weiss Becker, 34, também vê na profissão um desafio. Faz cerca de 17 anos que trabalha com chapeação e desenvolveu um gosto especial por automóveis. Formada em pedagogia, também esteve nas salas de aula. Por cerca de 10 anos, no entanto, passou a se dedicar especialmente para a chapeação. Em 2019, voltou a ensinar e hoje se divide entre os dois empregos em Lajeado.

Ela aprendeu a chapeação com o marido e hoje entende de carros tanto quanto ele. Ana Paula também é responsável pelo escritório da empresa da família, mas gosta mesmo é de colocar a mão na massa.
“Nunca consigo ter as unhas pintadas, mas eu não me importo, o trabalho compensa. A gente não precisa estar sempre com as unhas feitas”, afirma. O que ela mais gosta é ver os carros prontos para os clientes. Ela acredita que, por ser mulher, cuida mais dos detalhes.

“Eu entendo que não tenho a mesma força que eles, mas não precisa ter força para desmontar um carro. Tem que ter jeito, e a mulher é mais caprichosa, presta atenção aos detalhes de entregar um carro limpo e manter o ambiente organizado”, acredita.

Mas percebe que o meio ainda é masculinizado e que poucas mulheres desempenham a profissão. Ana Paula lembra de um cliente que atendeu certa vez. Quando ela pegou as ferramentas e foi para debaixo do carro, ele se surpreendeu. “Ele ficou acompanhando o meu trabalho surpreso por eu ser mulher e entender do assunto”, lembra.

Como a família mora ao lado da oficina, os filhos acompanham os pais no trabalho de vez em quando. A filha de oito anos também se interessa pelos carros e a mãe acredita que ela vá gostar de desempenhar a atividade.

Comando feminino

“No início tive bastante medo, justamente por ser mulher, porque ouvia que não daria conta, que isso é serviço pra homem, que não é lugar pra mulher”. Faz cerca de um ano que Caroline Hauschild, 33, integrou o Corpo de Bombeiros Voluntários (CBV) de Imigrante e Colinas. Hoje ela é a Comandante e conta que se voluntariou com a vontade de ajudar o próximo, principalmente quando iniciou a pandemia.

Seu sonho era ser médica e, apesar de não ter seguido a profissão, a cada toque do telefone de Emergência ou das sirenes, ela sente-se grata pelo trabalho. Ela conta que cada vez mais mulheres estão ingressando no meio, seja como voluntárias, civis ou militares. No CBV de Imigrante e Colinas, o grupo é composto, em sua maioria, por mulheres e elas também ocupam 80% da diretoria.

“Sinto uma gratidão enorme cada vez que saio com elas para uma ocorrência, porque sei o quanto batalham para estarem ali, tendo que cuidar da casa, filhos, maridos, problemas pessoais, são verdadeiras guerreiras”, acredita Carolina.

Ela diz ser comum ver o espanto das pessoas quando elas tiram o capacete e a roupa de combate. “Quando chegamos em uma ocorrência e as pessoas nos veem, a gente escuta as exclamações de surpresa: são mulheres. Mas acredito que estamos conquistando o nosso espaço por aqui”, conta.

Perícia no volante

Loraci Silvana Griesang, 65, também teve que lutar pelo seu espaço na profissão. Ela é taxista desde 1997 quando o marido morreu por complicações de saúde. No início não era comum mulheres motoristas e muitas pessoas estranharam. Mas aos poucos ela foi ganhando a confiança, principalmente de outras mulheres e de famílias com crianças.

“Elas me procuravam pela segurança e eu acabei criando muitas amizades durante esse tempo”, conta. Antes da pandemia, Loraci tinha horários fixos para levar as crianças para a escola, aula de inglês ou outras atividades. Ela também já fez algumas viagens mais longas.

A taxista conta que a confiança no trabalho dela é tão grande que algumas senhoras compartilham seus problemas durante a viagem e fazem questão de tratá-la como amiga. Algumas vezes, os filhos ligam para Loraci para saber da mães. “Eles vêm de outras cidades e quando chegam aqui querem saber se eu as levei para algum lugar, se eu sei onde elas estão”, lembra.

Loraci começa cedo e vai pra casa só no início da noite. São cerca de 14 horas de trabalho por dia. “Com isso eu fui envelhecendo, mas a cabeça continua jovem”, brinca. Ela afirma ter “puxado parelho” com outros motoristas desde o início e acredita que a mulher pode estar em todas as profissões.

ENTREVISTA

Jandra Cardoso Segabinazzi, 30, é professora de História e militante do movimento feminista da região

Como você vê a mulher no mercado de trabalho hoje?

Em primeiro lugar é importante lembrar que as mulheres são diversas. Mulheres brancas, negras e indígenas. Bissexuais, lésbicas, mulheres trans, mulheres cis, etc. É preciso pontuar as diversidades. E o cenário para mim, mulher branca e lésbica, é diferente para outras mulheres. Acredito que se hoje estamos tendo acesso a muitas profissões, é devido ao nosso apoio mútuo. Mulheres apoiando mulheres. Nossas conquistas são feitas por nós. Considero também que o acesso à informação amplia horizontes e também encoraja muitas meninas a seguirem seus sonhos e lutarem por seus direitos.

Como você vê a luta pelos direitos das mulheres atualmente?

Muitas coisas precisam mudar ainda. Se analisarmos as demandas das mulheres de séculos passados, vemos que muito do que elas reivindicavam ainda são reivindicações atuais. Como o direito básico de andar na rua sozinha sem correr o risco de ser violentada ou ainda o direito ao aborto legal e seguro. Na Argentina recentemente o aborto foi legalizado, e isso veio graças a persistência da luta das argentinas, sua articulação e como elas ocupam os espaços públicos a fim de reivindicar seus direitos. E por aqui no Brasil, vemos uma crescente de pelo menos 10% na violência doméstica e 5% nos feminicídios durante a pandemia do coronavírus, dados do Painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, 2020.

Como você avalia a mulher na sociedade hoje, a divisão das tarefas domésticas e da educação dos filhos?

Percebo entre as amigas que possuem filhos que sempre acaba nas mãos delas o maior cuidado e educação com a criança. Tanto as mães quanto as avós. A sociedade tenta nos fazer acreditar que a responsabilidade maior é da mulher, que o homem não é capaz de cuidar sozinho de uma criança. Nós temos dados do IBGE (2015) que apontam para 28,9 milhões de famílias brasileiras constituídas por mães solteiras. A Faculdade Getúlio Vargas apresentou que muitas mulheres perdem seus empregos no fim da licença maternidade. Ainda de acordo com a pesquisa, essa queda aponta para 51% das mulheres com menor escolaridade. Esses dados mostram como está impregnada a ideia de que as mulheres são as únicas responsáveis pela gravidez e pela criação dos filhos.

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