Cresce a busca por tratamento contra as drogas

Reflexo da pandemia

Cresce a busca por tratamento contra as drogas

Isolamento social e crise econômica são os principais fatores do aumento no consumo de álcool e outras drogas. No Caps AD de Lajeado, número de novos usuários aumentou cerca de 50%. Clínicas privadas também registram alta na procura por tratamento contra transtornos ligados ao consumo de substâncias

Cresce a busca por tratamento contra as drogas
Isolamento social e crise econômica trazidos pela pandemia estão ligados ao aumento no consumo de drogas. Créditos: Filipe Faleiro
Vale do Taquari

João Pedro* sempre bebeu. Uma ou duas vezes por semana, tomava uma “cervejada”. O hábito nunca foi motivo de preocupação, nem trouxe problemas pessoais ou profissionais. No início da pandemia, chegou a ficar trinta dias sem consumir bebida alcoólica e avaliava estar no controle da situação. Até que não mais.

“A esposa saía para trabalhar, a filha saiu de casa e eu ficava sozinho. Comecei a tomar uísque de manhã, abria o bar. Às vezes nem almoçava. Aí bebia cerveja até fechar o último bar. E isso virou uma rotina. Eu vi que estava me aprofundado e aquilo não era o que eu queria para mim”, conta.

Aposentado faz três anos, sempre trabalhou e teve empresa própria durante duas décadas. Aos sessenta, o ócio e o isolamento foram fatores determinantes para que a situação ficasse insustentável. No fim de 2020, ele procurou ajuda profissional no Caps AD, no Centro de Lajeado.

João nunca havia buscado tratamento em relação ao álcool. Cerca de 15 anos atrás, chegou a ser internado na Unidade de Desintoxicação de uma clínica privada para largar a maconha, que consumia desde a adolescência. Mas o modelo de tratamento e o ambiente fechado da clínica não agradaram. “Era desumano”, resume.

No Caps, encontrou um suporte terapêutico que lhe ajuda a se manter sóbrio faz duas semanas. Participa de atividades diárias de convivência, caminhadas e práticas artísticas.

O período escolhido para a desintoxicação foi um desafio a mais. João Pedro passou pelas celebrações de fim de ano sem consumir álcool. Brindou com água a entrada de 2021. E é assim que decidiu passar os próximos momentos de sua vida: sem bebida. Mas não foi uma decisão fácil.

“Teve um dia que deu vontade de chutar o balde. De um lado, você pensa ‘ah, não preciso disso’, mas não é verdade. Preciso fazer um bom tratamento. Eu quero ficar limpo e seguir outro rumo. Eu estava me afundando, ia acabar me detonando. Não é isso que eu quero pra mim”, projeta.

“Tenho que dar a volta por cima”

Márcio*, de 49 anos, tinha indicação para ser internado para desintoxicação, quando procurou tratamento para o alcoolismo no início de dezembro. Apesar da recomendação de buscar um hospital, o temor em relação ao vírus, fez com quem optasse por frequentar diariamente o Caps AD. Antes, não conhecia o serviço e tinha até certo preconceito.

Além das atividades ocupacionais, passou a tomar remédio para ansiedade e vitaminas. Foi a primeira vez em que procurou ajuda para tratar a dependência.

“Eu vim buscar um objetivo: voltar a ter minha vida normal. Eu perdi emprego, perdi parte da minha família. Levantava de manhã cedo e só bebia. Aí eu pensei: ‘pô, eu tô me matando. Eu tenho que me recuperar e dar a volta por cima’”, conta.

Márcio mora sozinho e era o trabalho como pintor que garantia seu sustento. Sóbrio há cinco semanas, seu principal plano no momento é voltar a trabalhar.

Mais usuários com maior gravidade

No Centro de Apoio Psicossocial (Caps AD) de Lajeado, o número de novos usuários em busca de tratamento cresceu cerca de 50% nos últimos meses. De acordo com a coordenadora do serviço, a enfermeira Franciele Schmitz, em média, de 18 a 20 pessoas buscam o Caps.

Em dezembro, mesmo com o mês mais curto em função dos feriados de fim de ano, foram 30. A procura aumentou significativamente a partir de agosto. Normalmente, o centro realiza em torno de 850 atendimentos mensais.

Franciele afirma que o isolamento social e a crise econômica repercutiram em sintomas depressivos crescentes. Ela afirma que, além de mais pessoas buscarem o serviço, os usuários chegam com um quadro mais agravado.

“As pessoas chegam em sofrimento maior. Várias perderam emprego, acabam tendo dificuldade em pagar as contas, se alimentar e o álcool, ou outra droga, acaba vindo como anestesia”, analisa.

O Caps AD chegou a ficar sem atendimento presencial de 24 de março e 8 de junho. Como o trabalho se baseia na construção coletiva e na convivência entre os usuários, muitos tiveram recaídas na interrupção no tratamento.

“Temos pessoas que estavam abstêmias há algum tempo e que por conta da pandemia entraram em sofrimento. Alguns conseguiram chegar antes de recair, outros vieram recaídos. Foi um ano muito atípico, percebemos que, de alguma forma, a pandemia bateu em todo mundo.”

Pesquisa da Fiocruz aponta aumento no consumo

Em pesquisa desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 17,6% das pessoas relataram aumento no consumo de álcool e 34% de tabaco durante a pandemia. A faixa etária que registrou maior aumento na ingestão de álcool foi a dos 30 aos 39 anos. A pesquisa associou as respostas à frequência em que a pessoa se sentiu triste ou deprimido. Os dados são da “ConVid – Pesquisa de Comportamentos” e foram coletados entre 24 de abril e 24 de maio deste ano.

Entrevista

“O estigma serve para não olharmos nossas próprias limitações”

O psiquiatra Roberto Pierobom Lima afirma que a sociedade sempre teve problemas relacionados com o consumo de substâncias psicotrópicas. De acordo com o especialista, os transtornos vão além da dependência.

O que é a dependência química? Que fatores indicam que o consumo está fora de controle e demanda atenção profissional?

Temos preferido utilizar a expressão ‘transtorno por uso de substâncias’. A síndrome de dependência é um destes problemas, mas existem níveis diferentes de relação atrapalhada com um consumo de substâncias psicoativas que também são preocupantes em termos de saúde mental. Sinais como necessidade de beber com muita frequência, dificuldade para controlar a quantidade, prejuízo no trabalho, relações familiares ou sociais podem ser considerados indicadores de que a pessoa tenha um problema com a bebida.

De que forma o isolamento social e a crise econômica trazidos pela pandemia agravam o consumo de  álcool e outras drogas?

As pesquisas têm demonstrado que houve um aumento no consumo de álcool durante a pandemia. Imagina-se que a diminuição das possibilidades de lazer, de encontros sociais, e a solidão tenham contribuído para isso.

Ainda há na sociedade um estigma em relação à pessoa com dependência química. De que forma isso impacta no tratamento?

Vivemos um tempo em que tendemos a pensar muito de forma binária: “eles” e “nós”. Na verdade, a questão dos problemas com consumo de substâncias psicoativas é dimensional, e não categorial. A sociedade sempre teve problemas com o consumo de substâncias. Temos muita dificuldade para respeitar a proibição de beber e dirigir, por exemplo. O estigma serve para não precisarmos olhar para nossas próprias limitações.

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