A mercantilização da educação no Brasil e as tentativas de desmoralizar as universidades públicas no país atingem também as universidades comunitárias. No Rio Grande do Sul, durante muitos anos, as comunitárias surfaram uma onda virtuosa, mas o cenário exige adaptações.
Historicamente, as instituições de ensino superior comunitárias são fruto da mobilização da sociedade civil e dos poderes públicos locais. Elas configuram um modelo institucional público não-estatal.
Surgiram há mais de 50 anos, cuja propriedade legal é privada, apesar de serem sem fins lucrativos e com finalidades públicas. A principal base de financiamento sempre foram recursos privados, oriundos do pagamento de mensalidades. Sua principal característica alicerçada no compromisso com o desenvolvimento da comunidade regional, por meio do ensino, da pesquisa e da extensão. Mas, isso pode estar mudando.
A crise que se estabeleceu com a voracidade dos players privados de EAD se acelerou durante a pandemia. As universidades ficaram sem chão.
No Vale do Taquari, a Univates experimenta, igualmente, transformações profundas, algumas inéditas. Várias frentes são descontinuadas, quadro é reduzido, tudo sob o argumento do equilíbrio financeiro.
Docências históricas e que, via de regra, deveriam nortear os rumos da instituição de ensino começam a ser preteridas por novas fontes de receitas que, por vezes, acabam afetando negócios já estabelecidos no ecossistema privado local.
O avanço da Univates no curso de medicina denota acerto, até aqui. Por outro lado, sua entrada na disputa por serviços na área privada, desagrada setores como clínicas ou autônomos, os quais enxergam concorrência desleal.
O cenário e a percepção ainda são incipientes, mas denotam certo grau de desconforto em setores privados e podem avançar na opinião pública, se o seu papel for questionado.
Com sua receita em transformação – mais pública e menos comunitária –, as universidades adotam caminho mais estreito para sua autonomia, e passam a ser mais vigiadas pela classe política e a comunidade.
A Fuvates e Univates, por exemplo, receberam juntas R$ 27 milhões em 2020, por serviços na UPA, em postos de saúde e escola infantil, cujo contrato é firmado com o município de Lajeado. A intenção é ampliar este bolo para abocanhar mais receita.
Tamanho volume de recursos públicos em uma única instituição acendem alertas para a concentração de serviços, hegemonia contratual de profissionais de saúde e super dependência.
Sobram exemplos de descontroles envolvendo dinheiro público, assim como não faltam notícias de universidades mal geridas.
A Univali de Itajaí (SC), ainda em 2018, foi alvo de críticas por má gestão. Chegou a atrasar salários de funcionários que entraram na Justiça para receber.
O custo das mensalidades, seu endividamento, apesar das isenções tributárias e a adoção de uma gestão mercadológica – acusada de virar balcão de negócios – colocaram luz sobre a instituição. Deputados e gestores municipais passaram a olhar a universidade com mais seletividade e menos simpatia.
A justificativa da Fundação Univali foi o atraso de verbas públicas — em especial do Fies — ,como um dos principais motivos para a crise.
Aqui na região, a Univates parece tentar se antecipar ao problema financeiro. Ainda que seu futuro no ensino desafia a reitoria, a Fuvates (mantenedora), e a comunidade local, pois o princípio de tudo foi galgado no espírito do desenvolvimento comunitário.
As universidades comunitárias gozam de certo grau de blindagem onde estão inseridas. Quando se abrem para gerir dinheiro público, passam a assumir uma corresponsabilidade pública que amplia a necessidade de transparência, desde cargos, salários e todo enredo da aplicação dos recursos.
É natural e legítimo que a população comece a cobrar de outra forma e, adotando um questionamento semelhante feito ao gestor público. Embora ainda diferente, terá de se abrir para responder temas até então mantidos nos corredores da universidade, ou dentro dos conselhos.
O desafio da Universidade do Vale do Taquari não é simples, muito menos pequeno. Enquanto ainda busca um rumo para financiar sua principal vocação – o ensino –, abre seu guarda-chuva e cria um espectro amplo de serviços, pelos quais será mais cobrada, diferente do que se fosse apenas uma instituição de ensino comunitária.
A produção acadêmica, o compromisso comunitário e do terceiro setor são pilares para não perder seus vínculos e relevância no contexto regional. Tudo isso com a dinâmica da tecnociência globalizada, saindo do papel para a prática, de modo que as empresas enxerguem utilidade nesta parceria.
Reavivar o debate político sobre a sustentabilidade do tipo de universidade comunitária desejado. Eis o movimento que o Vale deve fazer.
Afinal, se a universidade comunitária deixar de existir, o que a região perde?