O ano de 2020 não para de nos confrontar com fatos tristes. Neste ano, perdi minha mãe, vítima de covid. Ela tinha 90 anos e vivia muito bem. Estava feliz, aceitou e compreendeu as limitações da velhice. Encarava com bom humor os lapsos de memória e reclamava docemente do distanciamento da família, imposto pela pandemia. Nós, cumprindo a cartilha, redobramos os cuidados com a saúde dela, festejamos o aniversário de 90, temerosos com as notícias que vinham dos países que primeiro enfrentaram a covid. Dizia-se que, na Itália, médicos tiveram que optar pela vida de alguns pacientes, em detrimento da vida de outros, por falta de estrutura e de equipamentos. Os idosos, que por sua óbvia vulnerabilidade conquistaram privilégios com políticas inclusivas, atendimento preferencial em quase tudo, poderiam ser deixados pra trás. Opções tinham que ser feitas. Afinal, todas as vidas importam.
Fiquei pensando nos privilégios dos idosos nas filas, nos bancos, no cinema e o meu pensamento viajou. Na vida, eles são os primeiros da fila, pois chegaram primeiro. Seriam, por isso, os primeiros a partir? Segui “viajando” e fui parar numa fila para recebimento de órgãos. Sim, existe uma fila de receptores, pessoas carentes de um órgão vital a ser doado por outra pessoa, mas que não funciona como uma fila de banco ou de cinema. A fila de recepção de órgãos não funciona de forma linear e sempre ordenada. Cada vez que surge um doador, é feita a seleção dos possíveis receptores para os vários órgãos. Esta seleção leva em conta uma série de fatores. Nem sempre o mais antigo, o que chegou primeiro na fila, irá receber o órgão disponível. O receptor selecionado em primeiro lugar pode não estar em condições de receber um transplante no momento. Algumas vezes, a equipe médica responsável pela realização do transplante não está disponível ou o paciente selecionado não pode ser transplantado. Talvez, naquele momento, exista um receptor em condições mais críticas, que naquele momento exato esteja mais necessitado e também mais apto a receber o órgão. Enfim, são várias as razões que fazem com que a “fila única para o transplante” seja diferente da fila única do banco ou do cinema. O importante é saber que o receptor “preterido”, se não for transplantado naquele momento, não perderá o seu lugar na fila. É como se ele saísse da fila do cinema e voltasse noutro dia: seu lugar do dia anterior, estaria reservado para ele. Isto não acontece na fila do cinema…
Voltei a pensar na vida humana como um dom divino. Aquela vida que, por razão ou mesmo por instinto, temos o dever de preservar. Pensei nas vidas perdidas prematuramente, por acidentes, por descasos, por preconceitos. Pensei que, assim como os idosos e os caras da fila do transplante, existem pessoas em condições de vulnerabilidade. Todas as vidas importam, sim. As vidas dos reconhecidamente vulneráveis merecem um pouco mais de atenção.