Emociona-me lembrar de um fato que envolveu um amigo próximo. Sua mãe padecia de câncer, com sucessivas melhoras e pioras. No quinto ano de luta contra a doença, ao interná-la para mais uma quimioterapia, inesperadamente ela entra em coma, indo para a UTI. Dia seguinte, sem ter acesso à mãe, toca seu dia a dia, retornando às 17h (horário permitido) para vê-la. O médico informara que ela não sairia do coma e a passagem seria questão de tempo.
Parado ao lado do leito, via-se num conflito: pedir que a mantivessem assim o máximo de tempo para, ao menos, poder vê-la diariamente, mesmo que inconsciente, ou liberá-la. A tentação de segurá-la ali era por demais forte. Até porque, liberá-la como? Foi quando lhe ocorreu a crença de que, mesmo em coma, os pacientes sentem a presença de pessoas queridas. Ato contínuo, venceu o amor. Debruça-se no ouvido dela e sussurra: “te libero, mamãe. Vai encontrar Deus e o papai. Saberei me cuidar”. Surpreso, teve a impressão de ter visto leve sorriso e um lampejo de felicidade no rosto da mamãe. De volta ao quarto do hospital, nem dez minutos depois o avisaram do óbito. Sobrara amor no filho, dando à mãe a eterna felicidade.
Julho deste ano iniciou chuvoso, com períodos de precipitação e de tempo bom. Dia sete em diante choveu de forma contínua, gerando a expectativa de cheias. Só que nem mesmo os ribeirinhos calejados em enchentes podiam prever a noite de terror que aconteceu dia 09. Elevação rápida da água, em níveis apenas vistos na enchente de 1956. Aliado ao frio, o fenômeno submeteu centenas de pessoas a horas de terror, de deixar todos os seus pertences para trás diante da expectativa de morte iminente. Passada a cheia, novo desespero: a destruição que ocasionara.
Ato contínuo, estabeleceu-se uma extensa corrente de solidariedade. Milhares de pessoas doaram suas sobras – móveis, roupas, utensílios domésticos, comida –, em auxílio aos atingidos por aquela cheia sem precedentes. Trabalhamos com material de construção e correlatos. Por isto, muitos dos vitimados passaram lá, na maioria gente humilde que perdera bens e patrimônio amealhados por décadas. Mas em nenhum deles, sentimento de revolta. Só de gratidão por estarem vivos, por poderem recomeçar e, com as doações recebidas. Na maioria das vezes não eram muitos os objetos recebidos, porém, naquele momento em que tudo recomeçava do zero, representavam uma enormidade. E, não raras vezes eram sobras que estorvavam dentro de casa, para aqueles que os doaram.
Por fim, o relato feito por uma amiga, também envolvendo gestos singelos, de profundidade material e emocional ímpar. Conta que muitos componentes do enxoval de seu filhinho de quatro anos, desde que bebê se acumulavam e incomodavam. Até que lhe ocorreu repassar a uma amiga, recém mamãe. Ficou impressionada com a felicidade desta, com a utilidade que as doações teriam e a supressão de gastos que representavam. Novamente, gestos singelos que calam fundo.
Daí que ocorre a sugestão de os municípios, ao lado do esforço de grandes ações de natureza econômica, criarem pontos de recepção e de disponibilização de objetos que sobram para alguns e que suprem necessidades em outros. Para fazer a felicidade de alguém não é necessário alocar recursos vultosos. Simples sobras nossas têm o condão de fazê-lo.
Adicionalmente, permear nossos gestos com amor: do filho com a mãe moribunda, dos cidadãos diante de catástrofes, das mamães, umas com as outras, e de nós, despojando-nos do que não precisamos e do Poder Público Municipal, fazendo a mediação. E, temperando tudo isto, a tolerância ao invés da intransigência. Do outro lado, a recompensa será de um sorriso de felicidade.