A história de Rogério Kappler se confunde com a da Motomecânica – empresa que completou 75 anos em outubro. Ele ingressou na então Mecânica Ferrari em 1955, época em que o número de carros em Lajeado era ínfimo e a cidade sequer tinha ruas pavimentadas.
Começou como atendente do posto de gasolina da empresa e passou por diversas funções até se tornar diretor. Nesse meio tempo, realizou mais de mil vezes o sonho de transportar automóveis rodando de São Paulo até o Vale do Taquari.
O avanço na carreira foi acompanhado pelo crescimento da empresa – e da cidade. Hoje, aos 84 anos, Kappler é uma das principais referências no setor, seja em vendas, gestão ou no relacionamento com a fábrica. Ele pretende reduzir as atividades em 2021, deixando a diretoria e assumindo um posto no conselho da empresa.
Como começa a sua história com os carros?
Rogério Kappler – Nasci com o DNA ligado ao automóvel. Quando criança, construía carrinhos, truck, caminhão, ônibus e automóveis de argila. Colocava um preguinho, um cordão e puxava. Tínhamos uma vertente de água na nossa casa em Cruzeiro do Sul, daí fiz uma barragem que criou um lago e então fiz uma balsa de latinha. Bricava de atravessar os veículos que fazia. Teve uma época em que estudei no Colégio São José, em Lajeado. Quando a aula terminava mais cedo, voltava a pé e sempre passava na frente da Spohr Straatmann, concessionária Ford. Tinha uma F-100 com uma licença colada no para-brisa e um dia perguntei para o porteiro de quem era. Era o carro do seu Hugo Spohr e ele tinha trazido rodando de São Paulo. Eu gostei tanto que fiz uma pickup de barro e fiquei pensando se um dia eu ia conseguir trazer um carro de São Paulo. Um pouco depois meu pai me botou então a trabalhar na Mecânica Ferrari, hoje Motomecânica.
Quando você começou na empresa?
Kappler – Foi no dia 6 de janeiro de 1955. Meu pai me levou lá e disse: “Está aqui o meu guri, quero que ele aprenda alguma coisa. Fim do mês eu passo aqui para pagar se ele der alguma despesa”. Aquilo me feriu, porque eu tinha concluído o curso ginasial e nas férias fui junto com meu pai viajar. Meu irmão me trouxe um mostruário de malhas de Santa Catarina com um talão de pedidos. Na época, meu pai vendia balas e chocolates nos comércios do interior. Ele conversava com o comerciante e eu perguntava se a esposa estava em casa para mostrar as malhas. Em 17 dias de viagem pelas redondezas, vendi o suficiente para receber uma comissão de 32 mil Cruzeiros, ou 32 contos de réis. O salário mínimo na época era de 180 Cruzeiros. Então, eu queria era continuar viajando para vender.
Como foi esse início?
Kappler – Vim para Lajeado com mais três amigos e alugamos uma república. Trabalhava de dia, estudava de noite. Inicialmente, atendia o posto de gasolina da empresa, abastecia, calibrava pneu, limpava para-brisas. Na época, todos os carros eram abertos e não tinha nada de calçamento na cidade. Assim fui começando, até que me chamaram para atender no setor de peças. Aprendi bastante e quando eu estava praticamente aprovado, me trocaram para recepcionista da oficina. Logo depois, chefe da oficina. Nesse meio tempo, apareceu o interesse da Volkswagen em abrir uma concessionária em Lajeado.
De que forma a Motomecânica se tornou concessionária?
Kappler – Descobri o interesse da Volkswagem no antigo café Urso Branco, em 1956. Fui tomar um café e tinha um alemão lá. Como sabia falar alemão, conversei com ele e convidei para conhecer a empresa. Assim, conseguimos a concessionária, que começou a funcionar em 1957. Então, em 1960, me convocaram para fazer a ligação com a fábrica, em São Paulo. Na época, não tinha telefone, cegonha, nem nada. A gente ia para São Paulo fazer as negociações e trazia as Kombis rodando. Os fuscas vinham de avião. Meu sonho aconteceu e com grande fartura. No total, desde 1960 até 1990 eu trouxe mais de mil carros rodando.
Como chegavam os veículos ao Vale do Taquari?
Kappler – Os fuscas nós despachávamos na Cruzeiro Aviação em São Paulo, até Porto Alegre. De Porto Alegre trazíamos rodando até Lajeado. Já as Kombis não cabiam no avião, então tinham que vir rodando. Naquela época eram 1,7 mil quilômetros daqui até São Paulo, sendo que só 102 quilômetros de asfalto, o resto era estrada de chão. As vezes levávamos três dias e meio em uma viagem. Tudo isso sem direção hidráulica, sem ar-condicionado, não tinha nem rádio (risos). Com chuva e neblina, tínhamos que parar e dormir. As vezes dormia dentro da Kombi na beira da estrada.
Qual foi a principal crise enfrentada pela Motomecânica?
Kappler – Em 1963, 1964, a crise econômica no Brasil era muito forte. Tínhamos um compromisso com a fábrica com uma cota fixa. Os carros eram construídos de acordo com a cota de cada concessionária. Se não conseguia tirar todos no mês, ficava em dívida para o mês seguinte. Não havia financiamento e, com a crise, ninguém comprava nada. Estávamos devendo 11 carros, até que um amigo meu de Pouso Alegre (MG) me deu uma dica. Ele tinha um conhecido em São Paulo com capital para comprar carros. Fui conversar com esse lojista e consegui vender 15 unidades. Lembro que levei dinheiro para trazer dois carros de São Paulo e voltei com quatro. Meu patrão na época, seu Erny Stalhschmidt, perguntou se eu tinha assaltado um banco (risos).
Era mais difícil vender carros naquela época?
Kappler – Hoje é uma facilidade. Antigamente não havia financiamento. Tinha o desconto de duplicatas, mas a fábrica não dava nem um parafuso fiado, era tudo à vista. Se faltava um centavo, não saia negócio. Entrei na área de vendas e gostei demais. Quando descobria que tinha uma missa ou um jogo de futebol em uma localidade do interior, levava um carro até lá para fazer demonstração. Trabalhava sábado, domingo. Na época dava para contar nas mãos quantos carros tinham na região. Não tenho o número exato, mas vendi mais de dez mil carros. Em 1982, a Motomecânica já tinha alcançado mais de 5 mil unidades vendidas. Até hoje tem pessoas de idade que vem aqui falar comigo e lembrar de fuscas e kombis que vendi para eles.
Como foi a sua evolução na empresa?
Kappler – Eu fui crescendo, ganhando confiança e me destacando. Passei para a diretoria e depois meu pai passou para mim as ações que ele tinha da Motomecânica. Anos depois, quando veraneava em Itapema, Santa Catarina, apareceu de barbada um terreno de 2 mil metros quadrados na beira do rio Perequê. Comprei e um ano depois um diretor da Hering de Blumenal queria muito aquele terreno para fazer a garagem dos barcos dele. Vendi por 20 vezes mais do que tinha pago e com esse dinheiro comprei as ações de um senhor que queria sair da sociedade. Estou aqui do dia 6 de janeiro de 1955 até hoje.
Pensa na aposentadoria?
Kappler – A Motomecânica completou 75 anos e estou fechando 66 anos na empresa. Minha vida está aqui, tudo o que eu ganhei veio daqui. Não fiquei rico financeiramente, mas muito rico em amizades e conhecimento. Fiz muitas viagens promovidas pela Volksvagem. Conheci Alemanha, Áustria, Portugal, Espanha e muitos outros países. Foi uma faculdade, mas estou começando a pensar seriamente em parar. Não tenho data ainda, mas em abril do ano que vem termina meu mandato na diretoria, mas devo permanecer com um cargo no conselho.