A livre manifestação de pensamento é um direito fundamental. Está previsto lá na Constituição Federal, no art. 5º, inciso IV, integrando aquela categoria de direitos chamados de “cláusulas pétreas”, expressão que designa os direitos mais sagrados e mais protegidos. O sistema constitucional brasileiro não admite nem mesmo proposta de emenda que objetive mexer nas tais cláusulas pétreas. É uma baita segurança para a democracia.
Pois bem, na autointitulada “maior democracia do mundo”, em meio ao lento processo de apuração de votos, Donald Trump fez um discurso histórico, direto da Casa Branca, com ampla cobertura da imprensa mundial. E segundo a Cláudia Laitano, o discurso pode ser chamado de histórico não pelo que disse o presidente dos EUA, mas pelo que ele foi impedido de dizer. Explico: algumas redes de televisão interromperam a transmissão do discurso, quando Trump resolveu contestar dados da apuração, proferindo uma série de impropérios e de acusações. O jornal The New York Times definiu as declarações como “flagrantes inverdades”. Não tenho conhecimento suficiente sobre os fatos e mesmo sobre o sistema eleitoral americano pra afirmar se as declarações eram verdades ou inverdades. O que quero trazer à reflexão é o limite (ou a ausência dele) do sagrado direito à livre manifestação de pensamento. Cortar a fala de um presidente de um país, eleito pelo voto popular, é uma decisão complicada para qualquer órgão de imprensa. Admitir, reportar e “dar holofotes” para mentiras e impropérios, seja lá de quem for, especialmente no momento pelo qual passa todo o planeta, pode ter consequências imprevisíveis.
Portanto, quando o discurso falacioso se apresentar mais relevante do que o fato e o narrador agredir valores elementares de humanidade e de cidadania, caberá ao órgão de imprensa tomar a decisão difícil. Simplesmente deixar rolar, sob o argumento da liberdade de expressão, não me parece condizente com o dever fundamental de informar, obrigação inalienável dos órgãos de imprensa. Para a Cláudia Laitano, seguir com procedimentos padronizados de cobertura jornalística enquanto um piromaníaco acende um fósforo atrás do outro na floresta, pode transformar um jornalista em cúmplice do incêndio. Lembro de anos atrás, da repercussão que teve uma foto publicada na imprensa internacional. Ela retratava uma criança africana, desnutrida, sendo espreitada por um abutre. O fotógrafo foi questionado sobre qual atitude tomara, se afastara o abutre e salvara a criança. Ao que recordo, ele se limitou a retratar os horrores da guerra, dizendo-se impotente para salvar aquela vida em particular.
Se a imprensa tiver coragem de cortar, aos verborrágicos propagadores de falsas notícias e de teorias conspiratórias restarão as redes sociais. Sempre abertas ao “novo”, elas poderão ser o terreno fértil para o florescimento e o reflorescimento da insanidade propagada. Para nós, do lado de cá, restará o senso crítico e a racionalidade. Ou o que ainda restar deles.