O Tribunal Superior da Internet

Opinião

Rodrigo Martini

Rodrigo Martini

Jornalista

Coluna aborda os bastidores da política regional e discussão de temas polêmicos

O Tribunal Superior da Internet

O turbilhão de comentários, defesas, acusações, condenações sumárias e demais ingredientes peculiares aos meios digitais foi avassalador. Foram poucos minutos entre a divulgação de um trecho da audiência da jovem Mariana Ferrer e a publicação de milhares de editoriais, opiniões e até matérias jornalísticas questionando um suposto conceito jurídico que, pasmem, foi criado por uma jornalista. O tal “estupro culposo”. Artistas, instituições, profissionais, internautas e clubes de futebol logo se posicionaram. Perigosamente, foram minutos de muitas certezas e poucas dúvidas.

O termo “estupro culposo”, todos sabem, é uma invenção do site de notícias The Intercept Brasil. Não partiu do juiz e tampouco do Ministério Público. O equívoco decorreu da manchete escolhida para a matéria da jornalista Schirlei Alves, publicada no dia 3 de novembro: “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem”. Essa era a manchete. Uma manchete que possui um certo juízo de valor – uma característica do site – e atende ao anseio de uma luta histórica. E isso pode ser perigoso.

A manchete gerou um turbilhão nas redes sociais. Formadores de opinião se viram obrigados a comentar. Todos precisavam comentar ou se posicionar sobre o extravagante termo. Foi uma onda incontrolável de comentários, análises, opiniões, certezas e mais certezas. E poucas dúvidas. Pouquíssimas dúvidas. As provas foram deixadas de lado. E a emoção, aliada à revolta causada pela agressividade deplorável e indigesta do advogado de defesa, fez com que a empatia popular, mesmo sem informações, ficasse ao lado de Mariana – diferentemente do caso Neymar, lembram?

Eu não acompanhei todo o desenrolar da investigação, da formatação do inquérito, da entrega da denúncia e tampouco a aplicação da sentença. Eu não estava naquele camarim. Logo, tenho dúvidas. Muitas dúvidas. E embora seja notável a necessidade de debatermos cada vez mais sobre a vulnerabilidade das mulheres, sobre o nosso deprimente machismo estrutural, a nossa insistente relativização de todos os crimes, e também sobre a impunidade que destrói a credibilidade do nosso sistema judiciário, ainda assim a justiça tem os seus próprios caminhos para elucidar as dúvidas.

E foi isso. O sistema judiciário avaliou as dúvidas e as certezas e, em primeira instância, decidiu que não há elementos ou provas para comprovar o suposto estupro. Estaríamos todos diante de uma grande injustiça? Talvez. Afinal o sistema é falível. Da mesma forma, a condenação e a quase crucificação popular do acusado pode ser uma gigantesca e irreparável injustiça. Já pensaram nisso? E não é preciso cruzar o Rio Mampituba para entender a complexidade desses crimes. Aqui mesmo, em Lajeado, um caso emblemático virou notícia nacional há poucos anos.

O caso Lajeadense decorre de uma situação completamente distinta, é bem verdade, e sem a mínima possibilidade de consentimento por parte da vítima. Foi estupro. A dúvida, porém, é em relação ao verdadeiro autor.. No dia 14 de maio daquele ano, Israel de Oliveira Pacheco participou de um roubo em uma casa no bairro São Cristóvão. Durante a invasão, uma jovem foi estuprada. A vítima e a mãe o apontaram como sendo o agressor, e Pacheco foi condenado a 13 anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado. Posteriormente, a pena foi reduzida para 11 anos e seis meses. Sem condições financeiras para custear um advogado, ele foi atendido pela Defensoria Pública, que sempre alegou fragilidade no processo e no reconhecimento pessoal.

Conforme a Defensoria Pública, Israel foi apresentado às vítimas duas semanas após o crime para o reconhecimento. Ele foi o único suspeito a ser apresentado para tal. No momento do estupro, a luz estava apagada, a jovem estava vedada e o criminoso vestia um capuz. E o mais instigante: Israel não estava sozinho naquela casa. Havia um outro invasor, chamado Jacson Silva, que admitiu a invasão. E o principal. Um teste de DNA mostrou que havia sangue de Jacson na cama da vítima, no local onde ela foi estuprada. A vítima, porém, afirma jamais ter visto o comparsa do condenado.

Israel buscou a justiça para recorrer. Em 2011, o Terceiro Grupo Criminal do TJ/RS considerou prevalecer a palavra da vítima em relação à prova pericial. Ele não desistiu. E sete anos depois, em dezembro de 2018, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal absolveu Israel. Natural de Gramado, passou quatro anos e quatro meses preso em regime fechado. Ele não viu a filha crescer. Ela tinha só 2 meses quando ele foi preso. Hoje, a família não vive mais em Lajeado. E para o MP local, a decisão do STF é uma injustiça com a vítima do estupro.

É um breve paradoxo. Afinal, já se passaram doze anos e ainda restam dúvidas sobre o estupro em Lajeado. Enquanto isso, bastaram míseros minutos para milhões de pessoas alcançarem e propagarem suas próprias certezas em relação ao caso em Jurerê Internacional. Passados alguns poucos dias, alguns recuaram. Outros, não. E neste turbilhão de emoções, incertezas e termos jurídicos inventados, eu ainda sigo ao lado da dúvida e deixo as convicções aos especialistas. Certamente, o “Tribunal Superior da Internet” não contará tão cedo com o meu veredicto.

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