Enchentes: Memórias de um problema crônico

Cheias na história do vale

Enchentes: Memórias de um problema crônico

Em 1941, a região enfrentou a maior enchente já vista desde o início do século XX. Muito antes, porém, o Vale convive com os desafios das cheias do Taquari. Alguns destes fenômenos marcaram época e permanecem na memória de quem vivenciou

Enchentes: Memórias de um problema crônico
Vale do Taquari

Somos moldados pela presença do Rio Taquari. As cidades da região nascem e se formam a partir das margens do rio. O manancial influencia a forma como organizamos o espaço, a economia e a habitação.

Os centros dos municípios, onde estão os poderes político e religioso, ficam em locais altos, próximos aos rios, mas livres de enchentes.

“A cidade se moldou desta forma. Existe um fator topográfico, uma adaptação das pessoas que colonizaram e construíram a estas condições objetivas do terreno. Isso é muito marcante”, avalia o urbanista e professor da Univates Augusto Alves, especialista em planejamento urbano e regional.

Alves aponta a construção da rua Júlio de Castilhos como via principal do Centro por ficar em um “divisor de águas”, um ponto alto da região central. Antes da Júlio, a primeira via principal da cidade foi a Silva Jardim. “Ela é diagonal justamente para ser uma ligação direta entre o porto e a Matriz, antes mesmo do traçado regular da cidade”.

Registros ainda guardados por moradores e pesquisadores ajudam a contar em imagens a história das cheias no Vale do Taquari CRÉDITOS: Acervo-pessoal-Aristides-Tavares

Parques na enchente

O parque Professor Theobaldo Dick foi construído em uma antiga área de mato completamente alagável. Alves explica que se tratava de um amplo terreno que posuía baixo valor econômico e não serviria para outras finalidades.

A situação é semelhante em outros locais como o Parque Princesa do Vale, em Estrela; Pérola do Vale, em Arroio do Meio e o Caminhodrómo, em Encantado.

“A gente só tem grandes parques urbanos, por força da cheia. Não deixa de ser um lado bom. Nenhuma cidade teria um parque urbano se não fosse pelas enchentes”.

O interior vinha para assistir

João Hennemann é um observador das enchentes. Desde a juventude, acompanha as ocorrências do fenômeno, guarda livros e recortes de jornais. Muitas das informações de que dispõe obteve ouvindo os mais antigos contarem sobre as época que não presenciou. Em 1956, quando o Taquari chegou a fechar a avenida Benjamin Constant, ele tinha 12 anos.

“Parou no potreiro do velho Juca Dresch, no Cantão. Não tinha banheiro nas casas, era capunga, uma casinha de madeira com um buraco. A água levava tudo. Aquilo era leve, primeira coisa que ia”, conta.

A cidade ainda se concentrava próximo à água. Bairros mais altos, hoje densamente povoados, como São Cristóvão e Floresta, eram tomados de mato.

Hennemann recorda que quando o rio subia, atraía pessoas de fora da cidade, curiosas com os efeitos do fenômeno. “Os colonos do interior vinham de caminhão e traziam gente para ver onde havia parado a enchente. Chamava atenção porque virava tudo água”.

As cheias nas ondas do rádio

CRÉDITOS: Acervo-pessoal-flavio-jaeger

Como gerente e repórter da rádio Alto Taquari, Waldir Sudbrack, 80 anos, cobriu diversas enchentes do Rio Taquari. o rádio era a principal fonte de informações e os desafios da cobertura jornalística eram outros.

“A rádio Alto Taquari transmitia dia e noite, só saía do ar quando a água baixava. Se a rádio dizia que a enchente ia chegar em tantas horas, a população ribeirinha já sabia: ‘vamos dar no pé’. Era um trabalho de utilidade pública”, conta.

O acompanhamento do nível do rio era feito por telefone ou rádio amador com outras emissoras. Não eram medições oficiais, mas ele garante que funcionavam a contento. Para oferecer ao ouvinte um relato ao vivo, era utilizada uma unidade móvel.

“Em um barco emprestado, eu colocava um pequeno transmissor de ondas curtas que funcionava a bateria e transmitia ao vivo. Não tinha o celular. Hoje seria uma barbada”. Ele recorda que ainda não existiam a ponte alta nem a Trans Santa Rita. “Estrela virava uma ilha rodeada de água por todos os lados, ninguém entrava ou saia a não ser de barco”.

Porco ilhado

Em uma das incursões às áreas alagáveis, o radialista recorda que passaram em frente a uma residência, onde havia um porco amarrado junto à porta. Ele conta que havia muita resistência por parte dos ribeirinhos para deixar suas casas. Após circular pela região, voltou ao local. “O porco estava só com a cabeça fora d’água, ia morrer. Cheguei lá e cortei a corda, deixei o porco se mandar”, recorda.

Onde a água não havia chegado

Empresário e líder comunitário, Ítalo Reali mora na região conhecida como Cantão do Sapo desde 1957. “Convivo com a enchente há 63 anos. Morei na casa mais antiga de Lajeado, onde é o estacionamento do Rede Super. Eu e meus irmãos ficávamos na janela vendo o rio correr. Mas ali nunca pegou.”

Hoje vivendo na avenida Silva Jardim presenciou a maior enchente desde que chegou a Lajeado. “Aos 73 anos, estou vendo a enchente chegar na beira da minha casa onde nunca tinha chegado.”

Dados históricos são imprecisos

CRÉDITOS: Acervo-pessoal-Aristides-Tavares

Há discrepâncias nos registros disponíveis de enchentes antigas. Os métodos eram menos eficazes e as medições, muitas vezes, extra oficiais.

Há pelo menos duas referências principais neste sentido. A engenheira ambiental Sofia Moraes relacionou as enchentes de 1940 a 2015. O levantamento consta em seu Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado na Univates em 2015. Sofia compilou informações do Porto de Estrela, Rádio Independente, AHSul/Dnit, Centro de Informações Hidrometeorológicas da Univates, ANEEL e Hidroweb.

Outra relação foi fornecida pelo Centro de Informações Hidrometeorológicas (CIH) da Univates e foi publicada no livro “A História da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas”, de Gino Ferri e Ana Cecília Togni. Ele abrange de 1873 a 2011.

“São lembranças que evocam sofrimento físico e psicológico”

Silvana Rossetti Faleiro é historiadora e doutora em História. Ela analisa o surgimento das cidades junto aos rios e como a ação humana impacta as características dos mananciais.

Silvana Faleiro

Por que é comum as cidades nascerem nas margens dos rios?

Historicamente, os processos de ocupação dos espaços territoriais pelo homem priorizam a presença da água: rios, arroios, riachos, nascentes, fontes. Quanto mais caudalosos mais interessantes para as populações.

No caso do Vale do Taquari, todas as ocupações humanas privilegiaram a aproximação com os rios. Isso, desde os tempos mais pretéritos, quando os indígenas se aproximaram e se estabeleceram na região, até os processos posteriores de povoamento das terras no período de colonização com europeus e africanos e os processos em curso, com as migrações contemporâneas .

Que impactos essa ocupação causa?

Essa ocupação sem cautelas, dos espaços que margeiam os cursos d’água foi, com o passar do tempo, comprometendo de forma dramática a vegetação que margeia os rios e os protege da ação erosiva do tempo e das intempéries. Essa destruição gratuita e de tempo todo fragilizou de forma intensa e irreparável suas margens, e o impacto aparece na forma como os rios “saem de si”.

O “sair de si” furioso, forte, veloz, em todas as direções por onde encontra espaço, indica que as populações e seus aparelhamentos são inexistentes, ou insuficientes e ineficazes para minimizar a força das águas.

Que marcas permanentes ficaram de enchentes históricas nas cidades?

As “cicatrizes” mais cruéis, mais doloridas são aquelas que o olho alcança quando a observação é atenta e criteriosa: as margens estão nuas, a descoberto, raspadas pela incessante ação humana ao longo do tempo. Necessidade? Sim. Freios, cuidados, planejamento? Não. Esse ainda é um desafio para a comunidade regional.

Outra série de cicatrizes doloridas são aquelas que habitam a memória das pessoas alcançadas efetivamente pelas enchentes. São lembranças que evocam sofrimento físico e psicológico e que escancaram as peripécias da desigualdade social no Vale do Taquari, revelando a fragilidade e a vulnerabilidade de pessoas que, a cada enchente repetida, embora recebam os socorros necessários, ficam expostas à situações de penúria.

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