Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. É o título do livro. Ganhei de presente do meu pai, no ano de 2006, quando ele ainda lutava contra um câncer. A doença quase o levara. Mas a medicina e a ciência, aliadas da coragem, virtude nº 5, permitiram que nossa convivência ganhasse mais de 10 anos. Peguei o livro nesta semana, para ler e pensar um pouco. André Comte-Sponville, filósofo francês, enumera 18 grandes virtudes, começando pela polidez, virtude nº 1, indo até o amor, estranhamente deixado por último. Elas servem como pontos de partida, como premissas, cabendo a cada um identificar o quão positiva e necessária cada uma é em na vida. A partir daí, é só praticar.
Ninguém vai negar que as virtudes tiveram, e continuam tendo, papel fundamental na construção da civilização. Aquela história do fêmur curado, como sendo a primeira demonstração do traço civilizatório, só foi possível pela soma da coragem (5), da generosidade (7) e da compaixão (8). Sem essa soma de virtudes, o incauto cidadão da perna quebrada teria sido devorado pelos predadores ou morreria de fome e de sede. Sem a coragem (5), aliada à prudência (3), Colombo não teria se lançado ao mar para descobrir um novo caminho para as Índias e chegado na América. A História nos enche de exemplos.
Mais recentemente, tenho observado o que parece ser um fenômeno dos tempos virtuais. Esse fenômeno provoca uma clara distorção do que é percebido como virtude, em especial da coragem (5). Travestida de violência, de truculência e por vezes de ignorância, demonstrações de pseudocoragem vêm sendo saudadas como virtudes. As redes sociais têm sido pródigas em abrir espaço para todas as manifestações de pensamento, desde as mais nobres, passando pelas mais mesquinhas e chegando às raias da crueldade. O não ser polido (1), não ter compaixão (8) nem misericórdia (9), a falta de humildade (11) e a própria imprudência (3) passaram a ser saudadas como virtudes, como demonstrações de coragem. Protegidos pela tela do computador ou do celular, surgem muitos pseudocorajosos. Talvez, por conta do pragmatismo e da objetividade, tenhamos desdenhado das virtudes.
Comte-Sponville alerta acerca de um certo esquecimento das virtudes. Delas, dizia, quase não se fala mais. Mas isso não significa que não precisemos mais delas, nem nos autoriza a renunciar a elas. É melhor ensinar as virtudes, dizia Spinoza, do que condenar os vícios. É melhor a alegria do que a tristeza. É melhor a admiração do que o desprezo. É melhor o exemplo do que a vergonha.
As virtudes poderão tomar novas formas depois da pandemia. O “novo normal” importará na construção de novas virtudes, ou talvez na releitura daquelas um tanto esquecidas. Mas jamais a ausência de virtudes poderá ser considerada uma virtude.