Heróis e humanos

Opinião

Ney Arruda Filho

Ney Arruda Filho

Advogado

Coluna com foco na essência humana, tratando de temas desafiadores, aliada à visão jurídica

Heróis e humanos

Lajeado

Tenho lembranças muito carinhosas do meu avô Albino Arruda. Na casa da rua Francisco Karnal, que ainda existe, havia uma parreira nos fundos. Sentávamos ali, junto da cisterna, conversando e observando os cachos de uva crescer. Os netos tinham um privilégio, o de escolher um cacho. Daí o vô amarrava um barbante no talo, identificando o cacho escolhido com o nome do neto. A gente passava meses acompanhando o nosso cacho crescer, na expectativa comê-lo quando estivesse maduro. Era uma espera gostosa, única, necessária, pois não se pode acelerar o tempo da natureza.

Lembro com carinho, também, das histórias que o vô Albino contava sobre guerras e batalhas, sobre golpes e disputas políticas, os grandes líderes que defendiam suas ideias com a força da espada e do revolver. Verdadeiras sagas que se passaram nos anos da sua juventude. Talvez venha de lá o meu apreço por sagas, pelos heróis da ficção e pelas intermináveis lutas do bem contra o mal. Uma delas, em especial, me impressionava, pela grandiosidade dos números e pela sagacidade dos protagonistas. A Coluna Prestes teve inicio em 1927, em Santo Ângelo, e varou o território brasileiro, cruzando os estados do sul, centro-oeste e nordeste. Vô Albino contava que Prestes era um comunista, que queria derrubar Artur Bernardes, que teve a adesão de alguns militares e simpatizantes. O fato histórico rendeu muitas narrativas, pesquisas e é lembrado por muitos como uma jornada heroica. Tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Luis Carlos Prestes, na Fates, no final dos anos 1980. Ele já beirando os 90 anos, mantinha a paixão juvenil pelos ideais vividos, pelas lutas travadas, exaltando a nobreza do bom combate.

Durante muito tempo, a Coluna Prestes foi tratada de maneira romanceada, talvez muito em respeito pela figura de Prestes. Mas logo após a sua morte, a jornalista Eliane Brum realizou uma reportagem, refazendo o caminho da Coluna, visitando os povoados por onde passou, entrevistando sobreviventes e pessoas que viveram as consequências do evento nas suas vidas. Essa reportagem gerou um livro, publicado em 1994, onde ela conta o outro lado da “jornada heroica” do capitão Prestes e seus soldados. “Coluna Prestes – o avesso da lenda”, conta um lado dessa história, que até então ficava escondido sob o manto da idealização e do heroísmo. Ela relata a violência, a destruição, os saques, protagonizados por uma tropa faminta e descontrolada. Recentemente ganhei o livro de um amigo, com uma significativa dedicatória da autora. Eliane Brum escreveu: “a voz do povo do caminho, ela nos grita, que não existem heróis – só humanos”.
O Vô Albino morreu em 1987, com 94 anos e foi um herói pra mim. Não pelas façanhas que pode até ter realizado. Ele foi um herói pra mim pelas qualidades humanas que cultivava.

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