No princípio era o caos. Assim como em João 1:1-4, as narrativas da Criação, em suas mais diversas origens, descrevem o ponto de partida para a vida no universo: “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Na mitologia grega, caos seria a matéria sem forma definida, expressão que comumente nos habituamos a usar para tratar casos em que identificamos perda de controle, balburdia, confusão, aglomeração. Sem dúvida, não é o que vivemos hoje no Brasil e, sem dúvida alguma, não é o que desejamos viver. Embora estejamos espremidos entre as dúvidas e a necessidade de tocar nossa vida, e apesar de reafirmarmos nossa tendência à polarização e preferirmos perder que deixar alguém ganhar, temos nos mostrado parcialmente compromissados com as determinações dos órgãos mundiais de saúde no enfrentamento a essa pandemia.
Quando ouvi pelas primeiras vezes o conceito de globalização ser discutido, em meados da década de 1980, seus maiores oponentes eram da esquerda comunista, colegas meus de faculdade, que apontavam ali o avanço das grandes corporações, a exploração do trabalhador pelo capital. A aldeia global de McLuhan, que apontava para um sistema dinâmico de comércio e interação entre povos, era percebido como um modelo opressor à cultura local. Se, em parte, algo disso tomou forma, também nos deu margem a uma visão mais ampliada de mundo, permitindo que nos espelhássemos em processos produtivos inovadores, ampliássemos nosso mercado e pudéssemos evoluir como uma comunidade internacional. Salvo as diferenças econômicas que seguem prevalecendo, a transparência que essa visão sobre o mundo nos deu, tem nos permitido acompanhar mais de perto os fatos e estabelecer nossas próprias análises sobre política externa e posicionamento de países, de seus mandatários e de órgãos internacionais que contribuem para o equilíbrio do globo.
A utopia de um mundo sem fronteiras vem sendo derrubada. Desde a crise de 2008, vimos perdendo a integração. Os refugiados que invadiram a Europa e o crescente número de imigrantes ilegais que chegavam aos Estados Unidos foram estopim para o rompimento da União Europeia, com a saída do Reino Unido, e o início da construção do muro americano. O nacionalismo vem falando cada vez mais forte, o que insufla o individualismo, o pedantismo e o isolacionismo. Hoje, como o verbo é cabível a todos e a liberdade de expressão ainda prevalece, tomamos conhecimento, esta semana, do artigo do ministro brasileiro das Relações Exteriores, creditando o Coronavírus a um plano comunista e atacando a Organização Mundial da Saúde. Segundo publicações, “o vírus aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o projeto globalista. Este já se vinha executando por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do cientificismo”. Em meio a tudo que estamos passando e com tanto trabalho a fazer, seria este um bom discurso? Se todos soltarmos o verbo, não há gênesis bíblico ou teoria do Big Bang que nos segure. Com certeza, aí sim, será o caos.