A vida de goleiro muitas vezes é ingrata. É uma posição única no futebol, acostumada a consagrar e demonizar jogadores, que podem fazer milagres ou ter grandes falhas. Para ter sucesso na posição, é preciso acima de tudo ter perseverança e acreditar no seu potencial. Foi assim que Ewerton Machado Jaenisch, 62, passou de recusado em peneiras a um dos maiores ídolos de um clube europeu.
Natural de Cachoeira do Sul, Ewerton morou a maioria da infância em Porto Alegre. Na cabeça sempre o mesmo sonho: ser goleiro. Com 12 anos iniciou uma romaria de peneiras. Gremista que era, começou pelo Grêmio. Foi recusado. Então tentou o Inter. Recusado. Em Porto Alegre ainda tinha o São José e o Cruzeiro. Recusado e recusado. Foi para a Região Metropolitana tentar Aimoré e Novo Hamburgo, novas recusas. Fez isso dos 12 aos 18 anos. Todo ano fazia os testes e acabava recusado. Com 18 anos finalmente foi chamado para o Grêmio. Mas ficou apenas três meses no juvenil e teve que abandonar a equipe para servir ao Exército.
No quartel seguiu jogando pelas equipes do Exército. Foi assim que acabou parando no Vale do Taquari. Um amigo era delegado de polícia, e na época, o Estrela FC era treinado por um brigadiano. O goleiro do time de Estrela havia se machucado, então o delegado sugeriu ao técnico o seu amigo do Exército, Ewerton. Jaenisch chegou a Estrela para realizar um treino contra a equipe titular. O resultado? Derrota de 12 a 0 e um contrato para Ewerton. “Lembro claramente como se fosse hoje. Perdemos de 12 e eu fui contratado logo após o jogo. Se não fosse por mim a partida acabava uns 50 a 0.” Assim começou a se desenhar uma carreira de sucesso, mesmo com o início tardio após tantas decepções na infância.
Campanha histórica no Estrela FC
Acertado com o Estrela, começou no banco. No segundo jogo o goleiro se machucou, Ewerton entrou e fez história. Foram cerca de dois anos no time do Vale do Taquari, onde realizou campanhas históricas e bateu recordes. A equipe chegou inclusive a uma semifinal de Gauchão. Durante muio tempo Ewerton teve o recorde de maior tempo de jogo sem levar gols no Estadual. Nove jogos sem ser vazado. O goleiro chegou ao Estrela em 1978, e em julho de 1979 já estava acertado com um grande time, a Portuguesa, de São Paulo.
Chapéu em Sócrates o popularizou na Portuguesa
A Portuguesa era um dos grandes clubes de São Paulo. O início foi parecido com o do Estrela. O goleiro começou no banco, no segundo jogo o titular foi suspenso e ele entrou. Nunca mais saiu.
Seu primeiro jogo foi contra o Corinthians no Pacaembu. Ewerton saiu como o melhor do jogo no empate em 0 a 0.
Foi nessa partida que ele protagonizou um dos lances mais memoráveis de sua carreira. “Um cara fez um cruzamento e eu saí para agarrar a bola, mas não consegui. Eu estava na risca do gol e o Sócrates veio firme para fazer o gol. No instinto eu dei um tapinha na bola e ela passou por cima do Sócrates, uma espécie de chapéu. Peguei a bola e saí jogando. O Sócrates ainda se enrolou e caiu dentro do gol. O estádio foi a loucura e eu rapidamente me popularizei com a torcida.” Até hoje alguns torcedores relembram o lance.
Em meados dos anos 1980, a Portuguesa era um clube grande. Tinha o maior número de sócios do Brasil e fazia campanhas memoráveis no campeonatos Brasileiro e Paulista. “Uma hora eu estava na várzea sendo recusado nas peneiras. Na outra estava disputando o Gauchão contra o Inter de Falcão e o Grêmio de Paulo César Caju. Depois estava ali fechando o gol contra o Corinthians de Sócrates. O futebol é muito dinâmico, na época eu nem pensava muito nessas coisas.”
Na Portuguesa foram oito anos. Com Ewerton no gol o time jogou nove Campeonato Paulistas, onde chegou a ser vice-campeão, e nove Brasileirões. Em um desses o goleiro foi eleito o segundo melhor do campeonato em sua posição. Quase ganhando o famoso prêmio Bola de Prata, da revista Placar. “Caímos na semifinal e eu tinha pontuação para ser o melhor goleiro. Mas um dos finalistas tirou nota 10 numa das finais e acabou faturando o prêmio.”
Lesão quase o forçou a abandonar a carreira
Na Portuguesa, Ewerton teve a pior lesão de sua carreira. Em um jogo com o Palmeiras, dividiu com o atacante Reinaldo e levou a pior. “Fui para a bola, a gente chocou no ar e o joelho dele deu nas minhas costelas. Os maqueiros eram do Palmeiras e me derrubaram duas vezes até chegar no vestiário. As costelas quebradas foram perfurando meu rim.”
O goleiro foi imediatamente levado ao hospital e precisou ficar em observação. O quadro piorou com uma hemorragia interna. Ewerton foi levado para a mesa de cirurgia. Os médicos não sabiam exatamente o que é que havia acontecido. “Fiquei uma semana na UTI. As pessoas não falavam nada, não deixavam eu assistir TV ou ler jornal. Não queriam que eu soubesse o que havia acontecido.”
Uma semana depois o médico do clube teve a coragem de falar. “Seguinte, a gente tirou o teu rim esquerdo e o teu baço. Mas não te preocupa que em seis meses tu vai estar jogando bola novamente”, falou. “Foi um baque para mim, achei que nunca mais ia voltar, mas em cinco meses estava no campo.”
Parou em Portugal graças ao Corinthians
Depois da lesão o goleiro demorou a se recuperar e já estava quase desistindo da carreira. Foi quando apareceu o Noroeste, da cidade paulista de Bauru. Mesmo um clube pequeno do interior, com Ewerton no gol, conseguiram terminar na terceira colocação do Campeonato Paulista. Foi quando a sorte sorriu novamente e ele foi parar em Portugal.
Em 1987, o Presidente do Marítimo, time da Ilha da Madeira, veio junto de um diretor e do treinador garimpar jogadores no Brasil. Desembarcaram no Aeroporto de São Paulo, viram um carregador com a camisa do Corinthians e perguntaram para ele se sabia onde tinha um jogo. “O Coringão joga hoje à noite no Pacaembu”, falou.
O Corinthians perdeu o jogo de 1 a 0 e o goleiro adversário, Ewerton, foi o melhor da partida. Os portugueses gostaram do time e começaram a acompanhar as partidas. No fim queriam levar oito jogadores para Portugal. Acabaram levando Ewerton e mais dois. “Se tivessem chegado no Aeroporto e tivesse um cara do Palmeiras, ele não teria indicado o jogo do Corinthians e eles não iriam me ver jogar”, brinca.
Idolatria na Ilha da Madeira
Quando chegou no Marítimo, o time ganhou os seis primeiro jogos do Campeonato Português. Era líder do campeonato, à frente dos grandes Porto, Benfica e Sporting. “Descobriram que eu só tinha um rim. Na legislação esportiva consta que nenhum atleta de competições coletivas poderia praticar esse mesmo esporte se não tivesse os órgãos pares. E eu não tinha.”
As equipes pleitearam na justiça desportiva que o Marítimo perdesse os pontos e que Ewerton não jogasse mais. A solução foi assinar uma espécia de termo, em que se autorizava a jogar correndo o risco, e que ninguém além dele poderia ser cobrado ou penalizado em caso de nova lesão. Foram mais dez anos no clube e nenhuma lesão grave. Até hoje Ewerton é o jogador edtrangeiro com o maior número de jogos. Cerca de 300 partidas com a camisa do Marítimo.
Antes de Ewerton o clube era uma gangorra. Subia em um ano e caía em outro. Desde 1987, quando o goleiro chegou, o time nunca mais foi rebaixado. Está até hoje na primeira divisão. “Teve um ano que quase caímos. Fomos para a última rodada jogar fora de casa precisando vencer. Ganhamos e na volta para a Ilha da Madeira parecia que éramos campeões. O Aeroporto estava lotado e a festa foi gigante.”
Depois desse campeonato o Marítimo só cresceu. Ficou em sétimo, sexto, até que conseguiu a quinta colocação e classificações frequentes para a Taça da UEFA, onde chegou a enfrentar a gigante italiana Juventus. Quase conquistou títulos na Copa de Portugal, onde chegou em duas finais, perdidas para Sporting e Porto. “Tenho uma ligação muito forte com o clube e a cidade. Faz uns seis anos que não vou à Ilha da Madeira, mas quando volto parece que nunca saí. A primeira vez que voltei eu mal conseguia sair na rua. Eu sou uma grande ídolo lá.”
Foi no Marítimo que Ewerton fez a sua partida mais especial. Era semifinal da Copa de Portugal, jogo contra o Porto. O goleiro teve uma atuação de gala e ajudou o clube a chegar na final da competição. A partida foi marcante pois sua filha havia nascido na noite anterior. “Fiquei a noite toda com a minha esposa no hospital. Minha filha nasceu meio-dia e fiquei lá até às quatro da tarde. O jogo era às nove da noite. Me apresentei e peguei tudo. Estava 40h acordado. Quando a partida acabou eu praticamente desmaiei. Estava esgotado.”
Até hoje Ewerton recebe mensagens de torcedores agradecidos, que volta e meia comentam suas postagens no Facebook. “Dizem que sentem saudade de mim, que eu sou o maior goleiro da história do clube.”
Quase convocado à Seleção
Em sua carreira, Ewerton esteve perto da Seleção Brasileira. Foram duas quase convocações. A primeira foi em 1984, quando jogava na Portuguesa e esteve pré-convocado para defender o Brasil nas Olimpíadas. No fim, escolheram o time inteiro do Internacional para representar o país naquela edição. E Ewerton ficou de fora.
A outra ocasião não se concretizou por causa da lesão do rim. Era 1985 e o Brasil tinha no comando Telê Santana. “Um dia estava concentrado no hotel em São Paulo, o Telê veio, conversou comigo e disse que ia me convocar para um amistoso, queria me ver jogar.” Quatro semanas depois ocorreu a lesão. E a convocação nunca se concretizou. “Nunca fui convocado, mas sempre digo que passei do lado da convocação.”
O pós carreira
Depois que parou de jogar Ewerton passou a exercer outras funções no Marítimo. Ficou mais dois anos em Portugal até voltar para o Brasil. Os filhos estavam crescendo e ele queria ficar perto da família.
Na volta, tentou seguir uma carreira no futebol fora dos gramados. Trabalhou como treinador dos juniores do Caxias, onde também foi auxiliar técnico no profissional. Depois seguiu para o Juventude, onde treinou os juvenis e a equipe B. Pouco tempo depois desistiu da carreira de treinador. Decidiu voltar para Lajeado em 2003, onde abriu uma empresa e vive até hoje.
Aos 62 anos, Ewerton não se arrepende de nada na carreira e vê com orgulho a trajetória que traçou nos clubes que defendeu. O goleiro ainda se diverte com o futebol. Joga nos campeonatos internos do Clube Tiro e Caça e da SOGES, além de dar aulas para goleiros amadores.