Dizem que o ser humano tem duas vidas: a primeira começa quando a gente nasce; a segunda, quando descobre que só se vive uma vez. Ouvir a temida frase “É câncer” abala a cabeça de qualquer pessoa. Quando se é jovem, então, o diagnóstico é uma quebra abrupta da sensação de imortalidade natural aos de pouca idade.
Aos 23 anos fui diagnosticada com Linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer no sangue. Apesar de saber o risco que estar doente me trazia, meu primeiro pensamento não foi sobre morrer, mas sobre como eu estava vivendo. “Eu não fiz NADA da vida! NADA!” era o que eu repetia mentalmente. Para mim, eu estava apenas ensaiando viver – todos os meus sonhos me esperavam mais adiante. Depois que eu terminar a faculdade, depois que eu abrir meu escritório, depois que eu tiver filhos. Depois. E se o depois não viesse? Eu nunca havia pensado nessa possibilidade, e de repente parecia que eu estivera dormindo acordada todo esse tempo!
Apesar do susto, logo aceitei a situação, passei pelo tratamento e, dentro de poucos meses, estava liberada para voltar à vida normal. E lá estava eu, imortal de novo: estressada com o trabalho, dormindo pouco, comendo mal, chorando por besteira. Ao mesmo tempo, suava frio só de pensar em encarar uma recidiva, e perceber que eu não tinha controle sobre o futuro me colocava em uma posição de vulnerabilidade angustiante. Eu sabia que precisava tomar uma atitude e acordar para a vida, mas ainda não conseguia fazer mais do que bocejar.
Um dia, o que eu mais temia aconteceu: um exame de rotina apontou que o câncer havia voltado. Dessa vez, eu teria que encarar também um transplante de medula óssea. Passei semanas chorando e dizendo que eu não iria me tratar. O problema é que, negando ou aceitando o tratamento, ninguém poderia me garantir se eu estaria viva para receber meu diploma da faculdade, meu maior sonho naquele momento. Nenhum médico iria assinar um contrato garantindo a minha cura. E foi aí que eu vi a ironia da vida: ninguém conhece o futuro. Tentamos regrar a vida, mas a danada é rebelde e não está nem aí para os nossos planos.
Eu percebi então que o tratamento era uma aposta, e eu precisava torcer por mim. Ao invés de tentar dominar o futuro, entendi que acordar era se entregar à vida. Decidi que eu iria me esforçar para ser feliz – não para negar a dificuldade que estava vivendo, mas porque eu merecia. Todo mundo merece ser feliz! Viver até o fim é um direito universal, ou deveria ser. Não é justo que uma situação que não controlamos, como adoecer, nos prive de viver nossa existência plenamente.
Eu não podia mudar o que havia me acontecido – a única parte que me cabia era escolher como lidar. “Câncer não é escolha. Bom humor, é!” virou meu lema, slogan do blog que iniciei timidamente durante meu segundo tratamento, e que deu origem ao que hoje é a ONG Projeto Camaleão, que ajuda pacientes com câncer em Porto Alegre.
A vida então começou a fluir. Peguei meu sonhado diploma, guardei na gaveta e fui encarar o transplante. Quando saí do hospital, já era hora de viver outros sonhos. Enquanto planejávamos o primeiro evento do Projeto Camaleão, às vezes eu me pegava pensando “E se eu não chegar até lá?”. Mas respirava fundo e lembrava que era um passo de cada vez. Quando o dia chegou, agradeci por estar viva para ver mais um sonho se concretizar.
Desde o transplante, todo dia 8 é dia de comemorar. Já são seis anos de medula nova, data que considero meu segundo aniversário, e celebro até mais do que o dia em que nasci. O linfoma me trouxe momentos de sofrimento, mas também um propósito de vida: ajudar as pessoas a perceber que câncer não é castigo, e pode ser uma oportunidade de abrir os olhos e se entregar para uma vida mais atenta e plena. Se a gente quiser, é claro. Mas sem pressa, com um passo de cada vez.
Flavia Maoli – Presidente da ONG Projeto Camaleão
@alemdocabelo / @projetocamaleao