Na Alemanha do século 19 havia uma comunidade, situada ao norte, que falava um dialeto distinto. A língua se diferenciava do alemão, tinha semelhança com o holandês e estreita ligação com o inglês. Para se proteger do frio e da umidade, esses habitantes usavam calçados feitos integralmente de madeira. Por isso a língua deles ficou conhecida como “Plattdüütsk”, na tradução: “sapato de pau”.
Foram esses imigrantes alemães de Tecklenburg que chegaram ao Vale do Taquari em 1868, época em que a região era conhecida como “Colônia Teutônia”. Aqui instalados, desbravaram as matas para produzir alimentos, fundaram comunidades religiosas e escolas, tudo falando o sapato de pau.
Mais de 150 anos se passaram e, embora o português tenha se oficializado nessas regiões, há ainda muitos moradores que mantêm o hábito de se comunicar verbalmente pelo Plattdüütsk.
Em iniciativa inédita do município de Westfália, o sapato de pau ganhou livro com mais de 6 mil palavras traduzidas para o alemão e o português. Agora, além de ser falado, o dialeto trazido pelos antepassados do norte da Alemanha também poderá ser escrito.
Duas décadas de pesquisas
Pesquisador Lucildo Ahlert é responsável pela elaboração do Dicionário da Língua Westfaliana Brasileira, com coautoria do Grupo Amigos do Sapato de Pau. Conforme ele, o livro é planejado desde 1997.
O trabalho para resgatar antigas palavras usadas pelos imigrantes contou com visitas às regiões alemãs de Osnabrück e Tecklenburg, além de pesquisa em publicações com mais de dois séculos. “Achamos um livro em uma universidade americana de 1748. Naquela época, já havia essa preocupação de preservar o idioma”, relata Ahlert.
Conforme o autor, o livro terá palavras resgatadas dos antigos colonizadores e criações feitas pelo Grupo Amigos do Sapato de Pau, no caso de vocábulos que descrevem objetos inexistentes na época da migração.
Cita como exemplo o celular que, no dialeto westfaliano, será chamado de “Schlaunfone” (telefone inteligente), em uma mistura do inglês com o alemão.
A publicação tem 498 páginas e conta com a tradução em duas ordens: Plattdüütsk/Alemão/Português e Português/Alemão/Plattdüütsk. Também concentra histórias da migração e criação de Westfália, hino do município traduzido ao sapato de pau e textos na língua westfaliana brasileira.
Para o pesquisador, o dicionário irá proporcionar o uso do sapato de pau em livros e evitar o fim nas próximas gerações. “Se o sapato de pau sobreviveu 150 anos, deve ter algo interessante. É nossa missão mantê-lo vivo”, ressalta.
A administração municipal de Westfália imprimiu 500 exemplares. Moradores podem retirar o dicionário (um por família) na Biblioteca Pública Municipal, a partir de segunda-feira, 9. Haverá distribuição em prefeituras de outros municípios.
Interessados em adquirir o dicionário podem entrar em contato com a administração municipal de Westfália pelo 3762-4553 ou com Ahlert, pelo 3714-4652.

Grupo Amigos do Sapato de Pau e pesquisador Lucildo Ahlert (d) dedicaram mais de 20 anos para planejar dicionário da língua westfaliana brasileira
Próximos passos
O lançamento do dicionário ocorreu na quarta-feira, 4, na Casa da OASE, em Westfália. Fez parte da programação da XI Feira Municipal do Conhecimento e contou com a presença da secretária estadual de Cultura, Beatriz Araújo, e cônsul da Alemanha no RS e SC, além de membros da Academia Literária do Vale do Taquari (Alivat).
Utilizando expressões de arte, como a música e dança, a cultura westfaliana foi evidenciada pelo Coral Municipal e Grupo de Danças Folclóricas Alemãs Westfälische Tanzgruppe.
As soberanas do município (rainha Natália Spellmeier, 1ª princesa Taís Pott Rückert e 2ª princesa Letícia Deconti Fabrin) trouxeram mensagem no português, alemão, sapato de pau e italiano. Outro ponto importante foi a apresentação do hino municipal de Westfália em Plattdüütsk pelo Grupo Amigos do Sapato de Pau.
Durante a cerimônia, autoridades destacaram o marco histórico representado pelo lançamento do dicionário. Westfália se torna guardiã do Plattdüütsk e já tem o dialeto como língua cooficial desde 2016.
O próximo passo, segundo o prefeito Otávio Landmeier, será elaborar a parte gramatical da língua westfaliana brasileira.
“Ainda não chegamos ao fim. Temos outros desafios para manter a cultura do sapato de pau”, concluiu.
O lançamento do Dicionário da Língua Westfaliana Brasileira foi uma promoção da administração municipal em parceria com a Alivat.
Onde se fala o sapato de pau?
A primeira palavra dita por Hugo Pott, 63, foi em sapato de pau. O morador de Linha Berlim, em Westfália, só aprendeu português aos sete anos, quando começou os estudos na Escola Olavo Bilac.
Até hoje, em casa, Pott só fala o dialeto. “Tem ferramentas que nem sei o nome em português”, comenta. Na comunidade, ressalta, a maioria das famílias ainda preserva a língua trazida da Alemanha. “Pena que os jovens estão perdendo o costume por causa da TV”, lamenta.
Inexistem pesquisas sobre a quantidade de pessoas que usam o sapato de pau, entretanto, Ahlert cita redutos onde o dialeto ainda predomina. Em Westfália, por exemplo, estima que mais de mil habitantes são adeptos da língua.
FÁBIO KUHN – fabiokuhn@jornalahora.inf.br