“Melhorou muito. Tanto na área profissional quanto em qualidade de vida”. Essa afirmação parte do desenvolvedor de software, Luã Ciceri Schwertner, 23. Natural de Lajeado, saiu da região em 2016 para morar em Florianópolis, capital de Santa Catarina.
“Na minha área de atuação, Lajeado não oferecia muito espaço. Tive oportunidade de vir para Floripa e deu certo.” Apesar da saudade da mãe, dos demais familiares e dos amigos, as conquistas fizeram valer à pena. “Estou em uma posição profissional interessante. Tive a chance de palestrar em eventos direcionados para esse segmento, tanto aqui quanto em São Paulo. Isso abriu muitas portas.”
As opções de lazer, de entretenimento e de descanso também tornam o cotidiano mais prazeroso. Essa chamada qualidade de vida também se apresenta nos serviços básicos. “Aqui tem mais segurança. É um lugar tranquilo, apesar de ser uma capital”, conta.
Voltar para o estado natal não é uma opção. “Não passa pela minha cabeça. Enquanto eu puder escolher, vou ficar em Florianópolis.” Luã Schwertner é um dos quase 700 mil gaúchos que deixaram o RS nos últimos oito anos.
Dos atuais 11,3 milhões de habitantes, o RS ultrapassaria 12 milhões se todos os gaúchos retornassem ao Estado. É o que mostra estudo da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão (Seplag) sobre o movimento migratório e o quanto esta transição demográfica gera impactos tanto do ponto de vista econômico quanto social.
“O Rio Grande não tem se mostrado atrativo para reter pessoas, especialmente os mais jovens. O Estado precisará ´importar´ pessoas”, realça a secretária estadual Leany Lemos. Pelo diagnóstico, elaborado pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE), se verifica que o crescimento populacional é o menor do país.
Opção de 280 mil gaúchos
Santa Catarina é o destino predileto. Conforme o DEE, cerca de 280 mil nascidos no RS estão no estado vizinho. De Lajeado, Ismael Delazeri, 31, mora na cidade de São José, Região Metropolitana de Florianópolis. “A situação no Rio Grande está complicada. Estradas esburacadas, gasolina cara, muitos impostos.”
Para aliar crescimento profissional e mais qualidade de vida no dia a dia, ele e a noiva, Morgana Laís Francisco, deixaram a região em março do ano passado. “Lajeado em si é uma boa cidade para viver. Tem trabalho, é segura e tem uma população acolhedora. Mas eu precisava de algo novo, novos desafios.”
Para se manter, Delazeri alerta: “Tem que trabalhar. Do contrário, são três meses e voltam sem nada.” De acordo com ele, amigos e conhecidos foram para Florianópolis, se encantaram com a vida, com a praia, com outras opções de lazer. “Tem gente que se esquece daquilo que é mais importante. Tem que se dedicar”, realça.
Pelo estudo, depois de Santa Catarina, os estados que mais atraem são o Paraná (com 177 mil), o Mato Grosso (90 mil), São Paulo (37 mil) e o Mato Grosso do Sul (33 mil). Os demais estados, o total de gaúchos emigrantes soma 77,3 mil pessoas.
“Nos cobram excelência”
Ana Claudia Steffens, 37, de Lajeado, e Moisés Henrique, 43, de Teutônia, saíram da região em fevereiro deste ano. O casal abriu uma empresa de alimentação em Guarapari, Espírito Santo.
“Recebemos um sinal. Algo espiritual mesmo. Hoje, pela primeira vez temos nossa própria empresa. Carecíamos de uma mudança. Agora estamos sentindo isso na pele”, conta Henrique. As primeiras semanas foram difíceis. “Costumes diferentes, comidas, gírias, mas hoje, mesmo pouco tempo depois já estamos adaptados”, afirma Cláudia.
De acordo com eles, o povo capixaba tem muito respeito pelos gaúchos. “Reconhecem a nossa fibra e a nossa garra. Elogiam a pontualidade, a força de vontade em querer trabalhar.” Por outro lado, também há cobrança. “Os nossos clientes exigem qualidade. Nos cobram excelência em tudo”, diz Henrique.
O modo de vida também é diferente, afirma Cláudia. “No RS temos uma preocupação que vem da nossa cultura. Nascemos com uma obrigação de comprar uma casa, de prosperar sempre para depois aproveitar. Quando chega isso, muitos já estão no fim da vida.”
Em Guarapari, conhecida como a cidade da saúde, as pessoas têm uma visão diferente, diz. “Elas querem viver mais. No sentido de aproveitar as pequenas coisas. Não que ter uma boa casa ou um bom carro não seja importante. Só que são mais felizes mesmo tendo pouco.”
Gaúcho tipo exportação
A arte de preparar um churrasco levou Wilson Antônio Mocellin, 62, de Nova Bréscia para o mundo. Saiu do estado em 1975, tinha 17 anos. Foi para Brasília, trabalhar como garçom. O motivo: fugir da pobreza. “Passávamos muitas dificuldades no interior do município. Isso me fez buscar melhores condições de vida.”
Nestes quase 45 anos fora do RS, passou por diversas cidades e abriu uma rede de bares e restaurantes. Morou nos Estados Unidos por seis anos. Hoje mora em Uberlândia, Minas Gerais. “Nós apresentamos o Espeto Corrido para o Brasil”, afirma.
“Nunca imaginei que conseguiria estar no patamar atual. Não foi fácil, mas as coisas fluíram. Trabalhei muito e, por onde estive, representei o Rio Grande do Sul.”
Tradição do Estado
Além de churrasqueiro, Mocellin também toca acordeon desde os dez anos. Conhecido em Nova Bréscia, ajudou a criar o Encontro Internacional de Gaiteiros. Apesar da relação próxima com a tradição gaúcha, voltar não é uma opção. “Só para passear, ver os amigos e os familiares. Infelizmente o estado ficou para trás.”
O doutor em sociologia e professor da Unisc, Cesar Goes, realça que tanto a emigração, quanto a imigração, fazem parte da formação do RS. Essa avaliação se sustenta na própria história.
Entre os aspectos está o fato de ser um estado de fronteira. “Desde o século XVIII houve levas de colonização, o que constituiu muitas regiões gaúchas. Na metade sul, o povoamento de baixa densidade foi vinculado à mão de obra escrava.”
Duzentos anos depois, um grande movimento de saída foi a expansão agrícola para o centro-oeste do país. De acordo com Goes, a modernização também gerou pobreza. “Houve um fluxo interno migratório para cidades médias e à Região Metropolitana.”
Hoje, acredita o pesquisador, há dois tipos de migrantes. Aqueles que deixam a cidade natal por uma questão de sobrevivência, em busca de trabalho e de melhores condições de vida, e outro formado por empreendedores. “Não se tratam de ricos, mas pessoas com mais formação e um mínimo de dinheiro para investir.”
Na avaliação dele, o fenômeno atual de 700 mil gaúchos fora do RS não se trata de uma grande leva migratória devido à falta de oportunidades. “Esse movimento não é uma novidade. Não há um ciclo virtuoso desde os anos 70 para cá.”
Desafio de manter talentos
Conforme o pesquisador do DEE, Pedro Zuanazzi, o RS apresenta um déficit migratório, causando, apenas em 2018, diminuição de 0,12% da população. Em Santa Catarina, por exemplo, o processo foi inverso: cresceu 0,41%. Conforme Zuanazzi, “o saldo migratório passa a ter um papel ainda mais relevante uma vez que a maioria dos migrantes é formada po r pessoas de 20 a 35 anos, que estão no começo de seus períodos produtivos, contribuindo para o crescimento da região por um longo período”.
Na avaliação do pesquisador, esse fator tem impacto direto não apenas no crescimento do PIB do RS. No longo prazo, dificultará ainda mais compromissos obrigatórios como é o caso da Previdência e da dívida pública. Haveria a necessidade, segundo ele, de um salto em termos de produtividade por trabalhador para compensar estes reflexos.
Na visão da secretária Leany, o RS tem um grande desafio, após superar as questões fiscais, tornar-se capaz de atrair novos investimentos, reduzir a burocracia estatal e estimular a inovação. “Precisamos, acima de tudo, atrair jovens de outros estados e manter aqui nossos talentos”, acrescentou.
Um aspecto que se destaca na pesquisa é a perda de participação da população gaúcha no país. Conforme o pesquisador do DEE, Pedro Zuanazzi, o RS representava 5,6% dos habitantes do Brasil em 2010. Passou para 5,4 no ano passado. Os dois décimos significam menos 347 mil pessoas.
Movimentos como o Pro_Move, de Lajeado, visam gerar oportunidades e manter talentos no RS. No lançamento do projeto, em março deste ano, o secretário estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Luís Lamb, ressaltou que a iniciativa tem potencial e pode criar condições pelo fato de articular diversas forças, como empresas, universidade, poder público e sociedade.
Na contramão do RS
Pelo estudo, as regiões da Fronteira Oeste e Noroeste têm as maiores perdas dos últimos anos. Os moradores vão para outros estados e também para cidades do próprio RS. Entre migração interna, destacam-se Porto Alegre, Caxias do Sul, Lajeado e o Litoral Norte.
Em Lajeado, as oportunidades de trabalho, de negócios e a universidade são diferenciais e contribuem para o aumento populacional. Mecânico, com especialização em bombas injetoras automotivas, Rafael Medeiros da Silva, 31, veio de Manaus, capital de Amazonas. Está faz três meses no RS. Se mudou devido a uma oportunidade. “Em Manaus estava estabelecido. Casa própria, carro, mas sempre tive a vontade de trabalhar no sul. Fui chamado para um teste, fiz entrevista, e me escolheram.”
Ainda em fase de adaptação, quase desistiu. “O frio é muito intenso. Na minha região, é sempre quente. Faz 40ºC quase todo o dia.” Mas a condição financeira e a chegada da mulher, Renata, e dos filhos Sofia, 6, e Josué, 2, fizeram ele continuar em Lajeado.
De positivo, destaca a hospitalidade gaúcha e o ambiente de trabalho. “Somos muito bem tratados. Inclusive já foi convidado para churrascos com os novos amigos. “É muito bom. Se deixar, o gaúcho faz churrasco toda semana. Nós no Norte temos uma culinária bem diferente. Nossos pratos têm mais peixes.”
Pelo estudo do Departamento de Economia e Estatística, de 2010 a 2017, Lajeado teve um crescimento de 17,8% no número de habitantes. Hoje, conforme o IBGE, tem mais de 85 mil moradores.
Entrevista
“A gente não quer só trabalhar e comer. Queremos evoluir’”
Doutora em Geografia pela UFRGS e professora da área de Humanidades da Univates, Rosmari Terezinha Cazarotto avalia que a saída da população vem junto com uma redução na taxa de natalidade. As projeções indicam dificuldade no desenvolvimento econômico e na seguridade social.
A Hora – Quais os motivos para o estado atrair cada vez menos pessoas, ao mesmo tempo que mais gaúchos deixam o RS?
Rosmari Cazarotto – São vários os motivos. Isso vale para um município, uma região, um estado, um país e para o planeta. Se analisarmos apenas o Vale do Taquari, nos últimos 30 anos constataremos grandes mudanças.
Municípios que perderam população e outros que aumentaram. Os gaúchos já têm uma trajetória de redes migratórias pelo Brasil, levando inclusive seus CTGs, igrejas, ou seja, sua cultura. O fato de o RS atrair poucos imigrantes teríamos que analisar se esta atração se refere aos que se deslocam de um estado para outro, e que, portanto, são brasileiros ou se são imigrantes internacionais. Para os internacionais, o RS tem sido bastante atraente.
Existe alguma similaridade hoje com o que aconteceu naqueles anos? Por quê?
Rosmari – Realmente, hoje existem muitos imigrantes dos países fronteiriços e, em momentos de crise econômica, grupos se deslocam em busca de oportunidades. Quanto à diáspora gaúcha pelo território brasileiro, ela se intensifica nos anos 30 e 40 para o Oeste de Santa Catarina e Paraná.
Nos anos 60 e 70 avança para o Centro-Oeste, chegando até a Amazônia. E nos anos 80 avança para áreas do Nordeste em busca de terras baratas para a expansão do cultivo da soja.
Estudos mostram que lá formaram lideranças, criando uma rede regional de gaúchos pelo Brasil. Atualmente, além da cultura da soja, tem a criação de gado juntamente com novos componentes de ciência e tecnologia, que vão dando novos dinamismos às atividades.
Qual o impacto da perda de população para o estado?
Rosmari – O problema do saldo negativo das migrações é quando vem junto com baixas taxas de natalidade. Isso pode gerar um déficit demográfico que impacta sobre o desenvolvimento econômico e na seguridade social. Ainda não é o caso do RS, porém, os dados mostram é a redução significativa do número de filhos por mulher.
O que mais tem preocupado é a queda da população economicamente ativa. Podemos pensar a partir das regiões mais dinâmicas em termos de atividades produtivas, estão recorrendo aos imigrantes internacionais para suprir as vagas de emprego.
A realidade econômica, as dificuldades estruturais do RS e o déficit de serviços básicos têm alguma relação com esse processo? Por quê?
Rosmari – As pessoas buscam lugares que lhes ofereçam oportunidades e uma vida melhor. Dentro do Estado existem algumas regiões mais dinâmicas e outras estagnadas. Neste sentido, a mobilidade é uma constante. Por exemplo, tem áreas no RS onde a luz elétrica chegou faz dez anos.
Há um alerta sobre a partida de mão de obra qualificada e de pessoas em idade de produção. Muitos são jovens e formados. Essa perda de talentos impacta de que forma
Rosmari – É preocupante, pois há um investimento grande na formação a qual poderia contribuir com o desenvolvimento humano, social e espacial do RS. Assim irão contribuir com outros lugares. Mas tudo isso não é simples. As pessoas têm o direito de ir onde quiserem, onde a realização das suas expectativas e projetos de vida sejam vislumbradas. Lembro da fala de um imigrante haitiano, jovem, que disse “a gente não quer só trabalhar e comer. Queremos evoluir.”
Como fazer para manter essa população? Que tipo de estratégias podem segurar esses talentos no RS?
Rosmari – Penso que não exista uma resposta simples, este tema deveria entrar na agenda das discussões estratégicas envolvendo o Estado, o setor empresarial, universidades e a sociedade civil. Tanto nos EUA como na União Europeia, desde os anos 50, existem estudos e acompanhamento sistemático com políticas territoriais para as diferentes áreas que perdem população em detrimento de outras. Isso é reflexo do desenvolvimento desigual, a desigualdade se manifesta no território, também. Então as pessoas procuram áreas mais atrativas. Por exemplo, trabalho na pesquisa com os imigrantes internacionais recente e eles relatam que por R$100 a mais que uma empresa do mesmo ramo paga em Santa Catarina, se mudam. Quanto melhor o acesso aos serviços, a infraestrutura, ao trabalho, a situações de conforto de vida um pouco melhor, mais atraente se torna o lugar.
FILIPE FALEIRO – filipe@jornalahora.inf.br