Dez haitianos chegam ao Vale por semana

Vale do Taquari

Dez haitianos chegam ao Vale por semana

Oito anos após a chegada dos primeiros imigrantes do país da América Central, comunidade haitiana segue em crescimento Estimativa é de cerca de 2,4 mil pessoas distribuídas em cinco cidades. Neste sábado, são esperadas 600 pessoas na festa que celebra a cultura do país no Parque dos Dick, em Lajeado

Dez haitianos chegam ao Vale por semana

Entre a decisão de viajar e a partida não passou uma semana. O primeiro passo foi sair do Haiti passar pelo Panamá e chegar ao Equador. Foi a única parte do trajeto feita de avião. De lá, seguiu por Peru e Bolívia até entrar no Brasil, pelo Acre.
O percurso até Encantado não foi nada fácil. O dinheiro acabou na metade e Jempson Duperval chegou a passar fome. Ele saiu do haiti com 2 mil dólares (R$ 7,5 mil), que acreditava serem suficientes para alimentação e hospedagem até o destino final.
“Eu não sabia que Encantado era tão longe. No meio do caminho, faltou dinheiro. Cheguei a vomitar na viagem, de fome, de sofrimento. Viajei escondido dentro de um porta malas uma noite inteira”, lembra.
Outros percalços ainda viriam pelo caminho. No Equador, foi extorquido pela polícia. Perdeu 50 dólares. Jempson chegou ao Vale do Taquari em 2012.
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O trajeto percorrido pelos novos imigrantes que chegam à região é diferenteda epopeia vivida por Jempson sete anos atrás.
As irmãs, Oderine, 20 anos, e Shnydine Joseph, 14, chegaram à cidade duas semanas atrás. O visto demorou um ano para sair, mas foi resolvido ainda no Haiti. Com CPF e documentação em dia, a viagem foi tranquila. Um avião até o Panamá, outro ao Rio de Janeiro e um terceiro para chegar ao Rio Grande do Sul.
A primeira impressão foi positiva. “Uma cidade muito bonita”, define Oderine. Recém chegadas, as irmãs ainda não conviveram com brasileiros e conheceram pouco da região. Em casa, se dedicam a aprender Português por meio de vídeo aulas.
Aplicada nos estudos, Oderine já faz planos de vida no Brasil. “Quero fazer faculdade de Medicina e trabalhar aqui, no Haiti e em outros países, mas morar no Brasil”, projeta.
O pai Jean Robert vive em Encantado desde 2014. Foram cinco anos de trabalho para juntar o dinheiro necessário para trazer a mulher e as duas filhas. A viagem para três pessoas custa cerca de R$ 20 mil e a documentação, outros R$ 5 mil.

Festa de um povo multicultural

Neste sábado, 27, a comunidade de imigrantes no Vale do Taquari promove a Festa da Cultura Haitiana. Dança, música, teatro, gastronomia, brincadeiras folclóricas e sorteio de prêmios fazem parte da programação. A expectativa dos organizadores é reunir cerca de 600 imigrantes, de diversas cidades. Aberto aos brasileiros, o evento está previsto para as 17h, no Ginásio Nelson Brancher, no Parque dos Dick.
O Haiti é um país multicultural. Quatro povos indígenas habitavam o território antes da chegada dos colonizadores, em 1492. A ilha que hoje é compartilhada entre Haiti e República Dominicana foi dominada pelos espanhóis, franceses e, depois, pelos EUA. Ainda no período inicial da dominação europeia, o local se transformou em ponto de desembarque e comercialização de negros sequestrados de diversas áreas da África para serem distribuídos e escravizados pelas Américas.
Com fluência em cinco idiomas, Simon Renel era tradutor no Haiti e trabalhava para uma organização norte-americana que dava apoio social à população local. Ele perdeu o emprego em 2011, logo após o terremoto que devastou o país em 2010 e causou a morte de mais de 300 mil pessoas.
Devido às condições de pobreza e miséria, mesmo antes do abalo sísmico, o povo haitiano já tinha a característica migratória, principalmente para países como EUA, Canadá e França.
Após a catástrofe, contudo, esse processo se intensificou, e os imigrantes passaram a buscar novos rumos, como na América do Sul, em especial Brasil, Chile e Argentina.
Sem visto, cruzou fronteiras de países na América do Norte e do Sul até chegar em Tabatinga, no Amazonas. De lá, foi para Manaus, capital do estado do Norte. “Lá chegavam em torno de 600 haitianos por semana”, diz.
O Brasil vivia outro momento na economia. Diversas empresas do Centro-Sul enviavam representantes para oferecer oportunidades profissionais aos recém-chegados. O boom da construção civil e o crescimento da indústria de alimentos demandaram grande quantidade de mão de obra.
Após seis meses como “caseiro” em Manaus, Simon foi selecionado por uma empresa de concreto de Estrela, que trouxe para o Vale do Taquari pouco mais dez pessoas.
“Nós não tínhamos escolhas. Para nós, aquilo era uma grande oportunidade: uma empresa oferecer trabalho, pagar passagem e aluguel no início. Houve uma exploração também, mas foi por isso que viemos para esta região”.
Em Lajeado, Simon atua no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), onde auxilia os recém-chegados na obtenção de documentos e busca de emprego. Boa parte todos imigrantes que chegam ao Vale entram em contato com ele.
“Os brasileiros viam a gente só como um povo pobre que vem para cá. O Haiti é um dos países mais pobres do mundo, sim, por causa da crise política. Mas o povo haitiano é um povo muito forte. Daqueles haitianos que vêm para cá, cerca de 90% são profissionais com formação”, afirma Daniel Dimanchi, um dos organizadores do evento.

Criando raízes na comunidade

Ivonete Teixeira é voluntária do Movimento Leigo Scalabriniano e atua desde a chegada dos primeiros imigrantes a Encantado. Ela auxilia nos trâmites para obtenção de documentos.
Logo após a chegada dos primeiros imigrantes, a ajuda se concentrou na acolhida prática, com doações de roupas, roupas de cama e móveis, itens básicos para a instalação dos imigrantes na cidade. Agora que já estão organizados, o trabalho da pastoral é mais voltado à documentação e aulas de português.
Estima-se que a comunidade haitiana em Encantado tenha entre 500 e 800 membros. A rotatividade é alta, todos os meses tem gente chegando e indo embora.
Ela conta que os imigrantes já estão adaptados à região e construindo uma nova vida. Muitos já conseguiram trazer os familiares e outros formaram família por aqui.
“Eles demonstram que pretendem permanecer na cidade. Estão reunindo a família e há casos em que já adquiriram casa própria. Os haitianos estão criando raízes na comunidade”, afirma.

Entidades regionais prestam apoio

Quem chega na região conta com apoio de entidades que oferecem serviços aos imigrantes. A Comunidade Luterana desenvolve desde 2015 um trabalho voltado a este público, já tendo formado turmas em um curso gratuito de Língua Portuguesa e outro de técnicas para garçons.
Responsável pelo projeto, o pastor Luis Henrique Sievers afirma que no início, havia muito receio da comunidade em relação aos imigrantes, além do preconceito racial. Com o tempo, ele acredita que este processo esteja sendo superado. O pastor destaca que a região é formada por descendentes de imigrantes.
“Os primeiros vieram atrás de terra, porque o país era agricola. Os novos imigrantes vêm em busca de trabalho, no comércio e na indústria. Se as pesquisas estão certas, o ser humano saiu da África e povoou o planeta. Ser migrante está no nosso sangue”, conclui.

Parceria entre Univates e projeto Pense

Em parceria com o PENSE, do Grupo A Hora, um projeto iniciado na semana passada promove formação de professores para qualificar a atuação junto às crianças haitianas. Nos encontros, que ocorrem no colégio Fernandes Vieira, em Lajeado, os professores vão desenvolver material didático especializado.
A Univates promove ações voltadas aos imigrantes desde 2014. No início, voluntários espalhavam cartazes em diversos idiomas convidando para aulas gratuitas de Língua Portuguesa. As aulas eram ministradas dentro do local de trabalho, nas fábricas. Em 2016, a iniciativa virou curso de extensão.
Professora do curso de Letras da universidade, Grasiela Bublitz explica que o objetivo é aproximar o idioma da realidade das pessoas.
“Procuramos trabalhar a língua em uso, de acordo com a demanda. Eles precisam saber se comunicar no comércio, em um posto de saúde, buscar emprego.”

Além da mão de obra braçal

Abdias Gefrrard chegou ao Brasil atraído pela promessa de empregos na área de turismo em função da Copa do Mundo e das Olimpíadas. “Falsa promessa”, foi o que constatou na chegada. Entrou no país em 2013 e ouvia falar mais em mensalão e investigações de corrupção do que nos jogos.
Formado em Línguas, falando três idiomas, além da língua mãe – o crioulo – Abdias acreditava que sua experiência em turismo garantiria uma boa colocação profissional.
Por três anos, viveu na República Dominicana, onde dava aulas de línguas, trabalhava em um hotel cinco estrelas e tinha uma lan house.
Em Lajeado, trabalhou por quase 5 anos em uma indústria de alimentos. Chegou a ser encarregado de setor, mas achou que o nível de cobrança e de responsabilidade do cargo não condizia com o salário. Outro aspecto era a recusa dos funcionários brasileiros em aceitar ordens e orientações de um estrangeiro.
Em fevereiro de 2018, ele abriu seu próprio negócio: um brechó. Adaptado à cidade, não pensa em se mudar.
“Quero me aproximar da sociedade, para eles sentirem que eu faço parte dela. Quem sabe daqui a cinco ou dez anos eu vou ter minha loja, criando empregos”
Gefrrard afirma que os imigrantes são bem aceitos enquanto servem como mão de obra braçal na indústria. Para ele, é preciso prestar mais atenção aos imigrantes, que estão vivendo e criando seus filhos no país.
“Nós estamos vivendo no mesmo meio, compartilhando o mesmo ônibus, a mesma UTI, a mesma estrada. Isso é realidade. A gente está aqui, mas não ouvem os imigrantes”, desabafa.

“Meu filho vai nascer brasileiro”

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Logo que chegou ao país, Jempson se dedicou a aprender o idioma para poder retomar os estudos. “Meu pai disse: ‘se você for lá e não estudar, você não volta aqui.’” No Haiti, cursava a faculdade de Ciências Econômicas. No Vale, se formou técnico em contabilidade. Hoje faz outro curso técnico, em eletroeletrônica na Univates e trabalha em uma empresa de informática. Com outros conterrâneos, criou o programa Conexão Haiti, aos sábados, na Rádio Encantado.
Jempson se tornou uma referência para os conterrâneos. É procurado pelos que precisam de ajuda com o idioma, a documentação e a busca por emprego.
Há quatro meses, Jempson conheceu Estha, haitiana recém chegada à região. Se conheceram, começaram a namorar e estão casados faz quatro meses. Ela está grávida de três meses. “Meu filho vai nascer brasileiro”, projeta.

Diferenças culturais dificultam adaptação

Os irmãos Wadna, 18, e Gusly Pierre, 16, enfrentam dificuldades de adaptação. O pai veio primeiro, eles chegaram faz três anos. A casa é própria. Nela, moram sete pessoas da mesma família. Na escola, contam com ajuda de colegas para lidar com o idioma. A entrevista precisou da tradução de conterrâneo Nahum Peters Jean.
Gusly socializa por meio do futebol. Joga como zagueiro ou atacante e virou torcedor do Grêmio.
Eles destacam a diferença entre as duas culturas. As festas de Natal são um exemplo dessa discrepância. Enquanto no Brasil, as famílias se reúnem em casa para a ceia. No Haiti, as casas ficam vazias, a data é celebrada com festa nas ruas.
No som, a playlist mistura os ritmos que fazem sucesso nos dois países. O funk brasileiro divide espaço com o raboday, o kompa e o zouk.
Para o futuro, os irmãos projetam nova migração. Gusly quer morar na França, e Wadna, nos Estados Unidos.
 


 

MATHEUS CHAPARINI – matheus@jornalahora.inf.br

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