Jovem de 23 anos solteira e grávida. Pai conservador que não aceitava a gestação imprevista. SP (nome fictício) nasceu em meio a este cenário, no dia 10 de fevereiro de 1963. O parto ocorreu embaixo de uma árvore que existe até hoje na divisa entre Putinga e Ilópolis. Sem médicos e com ajuda apenas da mãe, a jovem teve SP amedrontada pelas ameaças do pai. “Vou matar ele depois do nascimento”, afirmava.
Por nove meses, a jovem conseguiu manter o filho em seus braços. Chegou até a batizá-lo. Mas as intimidações do pai eram constantes. A fúria aumentava quando ele bebia. Era necessário esconder o recém-nascido para evitar o pior. A situação se complicou ainda mais quando a criança foi diagnosticada com pneumonia. Não havia recursos para salvá-lo.
Então surge um casal de parentes distantes. Eles queriam adotar o bebê. A promessa era que a mãe biológica poderia conviver com o filho. Só que a criança foi levada para Caxias do Sul e registrada no dia 25 de janeiro de 1964 como filho legítimo do casal.
O procedimento, conhecido ironicamente pelo termo “adoção à brasileira”, é considerado ilegal atualmente.
Por 14 anos, SP conviveu com os pais e parentes adotivos sem saber da inexistência de vínculos biológicos. O segredo veio à tona após discussão com a avó paterna. Ela contou, de forma enganosa, que ele foi abandonado pela mãe verdadeira.
O jovem ficou em choque, mas aceitou a situação. Teve sorte de ter sido adotado por uma família carinhosa e recebido boa educação. SP e a avó compactuaram que os pais adotivos não ficariam sabendo que o segredo foi revelado. Assim a vida seguiu.
Quando SP tinha quase 30 anos, recebeu a visita de colegas de profissão de Encantado. Eles traziam consigo uma carta de um amigo da mãe biológica. O documento dizia que a mãe não o abandonou por vontade própria e sequer constituiu outra família por querer o filho há anos perdido.
O reencontro ocorreu em Encantado, na década de 90, com um sentimento estranho. “Me senti culpado e vi que ela também se sentia assim, mesmo não tendo culpa de nada. A vida fez ela me deixar, pois isso era o melhor para mim”, conta o homem que prefere não se identificar na reportagem por questões pessoais.
Os dois restabeleceram os laços familiares. A mãe biológica se emocionou ao conhecer a neta. O filho visitou a antiga árvore de Ilópolis e Putinga, refúgio no dia do parto. A convivência durou 20 anos, até 2012, quando a mãe morreu em função de um AVC.
Reconhecimento na Justiça
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A história, com tons novelescos, foi parar na Justiça de Encantado. Em 2017, SP entrou com um pedido de maternidade com objetivo de colocar o nome da mãe biológica em seu registro de nascimento, sem excluir os pais adotivos.
O processo foi transferido para comarcas de Caxias do Sul, Arvorezinha e Porto Alegre até retornar para Encantado. Responsável por analisar o caso, a juíza Jacqueline Bervian reconheceu a filiação biológica no dia 12 de junho.
A decisão foi tomada sem necessidade de exame de DNA que comprovasse o laço sanguíneo. Teve como base fotografias, documentos e depoimento de uma das tias biológicas de SP. “Ela se escondeu embaixo da escada com o bebê quando disseram que ele seria entregue para outro casal. Tudo que quis na vida foi ter o filho de volta”, contou durante a audiência.
Na sentença, a juíza ponderou sobre mudanças socioculturais como o alargamento do conceito de família e o direito da pessoa em buscar a felicidade. “Ele conseguiu colocar no papel algo que na vida real já existia. Por 20 anos eles conviveram como mãe e filho”, cita a magistrada.
Para SP, o registro na Justiça significa reconhecimento da mãe biológica para a história. Ele destaca que, além das duas mães, também conviveu por anos com uma tia paterna adotiva. “Se pudesse incluiria o nome das três. Cada uma fez sua parte do jeito que a vida lhe permitiu”, relata.
Casado e com uma filha de 14 anos, o homem também restabeleceu contato com duas irmãs paternas. Como lição, acredita que a própria história mostra ao mundo a importância da família. “Ter alguém que está ao seu lado. Isso é a base da vida”, conclui.
FÁBIO KUHN – fabiokuhn@jornalahora.inf.br