Aos 56 anos, homem ganha direito de ter duas mães

Princípio da felicidade

Aos 56 anos, homem ganha direito de ter duas mães

Decisão foi proferida pela juíza de Encantado em junho. Adotado com nove meses de vida, homem reencontrou mãe biológica após 30 anos

Aos 56 anos, homem ganha direito de ter duas mães

Jovem de 23 anos solteira e grávida. Pai conservador que não aceitava a gestação imprevista. SP (nome fictício) nasceu em meio a este cenário, no dia 10 de fevereiro de 1963. O parto ocorreu embaixo de uma árvore que existe até hoje na divisa entre Putinga e Ilópolis. Sem médicos e com ajuda apenas da mãe, a jovem teve SP amedrontada pelas ameaças do pai. “Vou matar ele depois do nascimento”, afirmava.
Por nove meses, a jovem conseguiu manter o filho em seus braços. Chegou até a batizá-lo. Mas as intimidações do pai eram constantes. A fúria aumentava quando ele bebia. Era necessário esconder o recém-nascido para evitar o pior. A situação se complicou ainda mais quando a criança foi diagnosticada com pneumonia. Não havia recursos para salvá-lo.
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Então surge um casal de parentes distantes. Eles queriam adotar o bebê. A promessa era que a mãe biológica poderia conviver com o filho. Só que a criança foi levada para Caxias do Sul e registrada no dia 25 de janeiro de 1964 como filho legítimo do casal.
O procedimento, conhecido ironicamente pelo termo “adoção à brasileira”, é considerado ilegal atualmente.
Por 14 anos, SP conviveu com os pais e parentes adotivos sem saber da inexistência de vínculos biológicos. O segredo veio à tona após discussão com a avó paterna. Ela contou, de forma enganosa, que ele foi abandonado pela mãe verdadeira.
O jovem ficou em choque, mas aceitou a situação. Teve sorte de ter sido adotado por uma família carinhosa e recebido boa educação. SP e a avó compactuaram que os pais adotivos não ficariam sabendo que o segredo foi revelado. Assim a vida seguiu.
Quando SP tinha quase 30 anos, recebeu a visita de colegas de profissão de Encantado. Eles traziam consigo uma carta de um amigo da mãe biológica. O documento dizia que a mãe não o abandonou por vontade própria e sequer constituiu outra família por querer o filho há anos perdido.
O reencontro ocorreu em Encantado, na década de 90, com um sentimento estranho. “Me senti culpado e vi que ela também se sentia assim, mesmo não tendo culpa de nada. A vida fez ela me deixar, pois isso era o melhor para mim”, conta o homem que prefere não se identificar na reportagem por questões pessoais.
Os dois restabeleceram os laços familiares. A mãe biológica se emocionou ao conhecer a neta. O filho visitou a antiga árvore de Ilópolis e Putinga, refúgio no dia do parto. A convivência durou 20 anos, até 2012, quando a mãe morreu em função de um AVC.

Reconhecimento  na Justiça

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A história, com tons novelescos, foi parar na Justiça de Encantado. Em 2017, SP entrou com um pedido de maternidade com objetivo de colocar o nome da mãe biológica em seu registro de nascimento, sem excluir os pais adotivos.
O processo foi transferido para comarcas de Caxias do Sul, Arvorezinha e Porto Alegre até retornar para Encantado. Responsável por analisar o caso, a juíza Jacqueline Bervian reconheceu a filiação biológica no dia 12 de junho.
A decisão foi tomada sem necessidade de exame de DNA que comprovasse o laço sanguíneo. Teve como base fotografias, documentos e depoimento de uma das tias biológicas de SP. “Ela se escondeu embaixo da escada com o bebê quando disseram que ele seria entregue para outro casal. Tudo que quis na vida foi ter o filho de volta”, contou durante a audiência.
Na sentença, a juíza ponderou sobre mudanças socioculturais como o alargamento do conceito de família e o direito da pessoa em buscar a felicidade. “Ele conseguiu colocar no papel algo que na vida real já existia. Por 20 anos eles conviveram como mãe e filho”, cita a magistrada.
Para SP, o registro na Justiça significa reconhecimento da mãe biológica para a história. Ele destaca que, além das duas mães, também conviveu por anos com uma tia paterna adotiva. “Se pudesse incluiria o nome das três. Cada uma fez sua parte do jeito que a vida lhe permitiu”, relata.
Casado e com uma filha de 14 anos, o homem também restabeleceu contato com duas irmãs paternas. Como lição, acredita que a própria história mostra ao mundo a importância da família. “Ter alguém que está ao seu lado. Isso é a base da vida”, conclui.
 

FÁBIO KUHN – fabiokuhn@jornalahora.inf.br

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