Caminhos para se encontrar

Santiago de Compostela

Caminhos para se encontrar

Jornalista percorre cerca de 800 quilômetros entre Saint Jean Pied de Port, na França, e a mística cidade de Santiago de Compostela, na Espanha. A peregrinação de 30 dias pelo chamado Caminho Francês é uma viagem espiritual e cultural pelo interior da Europa, que atrai mais de 200 mil viajantes a cada ano. No Vale do Taquari, outros peregrinos também já se aventuraram com a mochila nas costas em busca do autoconhecimento

Caminhos para se encontrar

A preparação para o místico Caminho de Santiago inicia muito antes da viagem para a Europa. Pesquisar detalhes do trajeto escolhido, ouvir relatos de outros peregrinos e economizar o dinheiro necessário ao custeio das passagens e demais gastos inevitáveis nesses 30 dias são passos importantes. Mas nada que se compare à relevância de preparar a grande parceira dessa jornada cheia de privilégios: a nossa mochila.
O corpo vai enfrentar caminhadas diárias que podem variar de 20 a 40 quilômetros. E tudo fica pior com alguns quilos dependurados nas costas. Por isso, a escolha dos materiais e vestuários é fundamental para realizar um bom caminho. A dica é não levar mais de 10% do próprio peso. No meu caso, a mochila de 30 litros estava pesando cerca de sete quilos.
Era o básico. Para vestir, três camisetas dry; uma calça-bermuda; uma calça de moletom; um casaco de moletom; um casaco corta-vento; uma bota; um chinelo; e um conjunto formado por uma bermuda e uma camiseta velha para dormir. Junto a isso, coloquei meu saco de dormir, uma toalha, alguns remédios e itens de higiene – basicamente uma escova de dente, a pasta, e, um shampoo.
“Por mais de 40 dias carreguei minha casa nas costas. Dentro da mochila de sete quilos, levei roupas para frio e calor, produtos de higiene básica, saco de dormir, boné e touca. Um chinelo, água e um pouco de comida. Nada de batom, apenas o essencial.
Justamente para estar mais próxima da minha própria essência. É possível e é uma sensação sem igual. Vou sentir saudades”, resume a lajeadense Maira Enger, 33 anos, que realizou o caminho em 2017.
Mochila pronta, a decisão agora é pela melhor forma de chegar até o destino inicial da peregrinação, a cidade francesa de Saint Jean Pied de Port (SJPP). Os brasileiros costumam utilizar dois caminhos. Um desses inclui um voo até Paris e depois um trajeto de quase 700 quilômetros de trem até o ponto de partida da jornada. Outros voam até Madrid e de lá enfrentam – de trem ou ônibus – mais 470 quilômetros até SJPP. Optei pela capital espanhola.

O Caminho Francês

Existem vários trajetos para caminhar até uma das principais cidades da Galícia, na Espanha. O Caminho Inglês; o Caminho Português; o Caminho Primitivo; o Caminho do Norte; o Caminho Aragonês. O importante é seguir os passos traçados desde o ano de 813, ano em que um eremita encontrou a ossada de Tiago, um dos apóstolos de Cristo, em um ponto onde hoje se localiza a Catedral de Santiago.
O Caminho Francês é o mais popular. De lá partem 70% dos viajantes. E logo no primeiro dia, o peregrino cruza o pior trecho dos 800 quilômetros: a Cordilheira dos Pirineus. É preciso subir de 300 para quase 1,5 mil metros de altitude durante 20 quilômetros de caminhada. Após, são mais sete de uma íngreme descida até chegar à Roncesvalles, em solo espanhol. “É o trecho mais bonito. Mas parecem 50 quilômetros”, brinca Bruno Kranz, 29 anos, morador de Lajeado que peregrinou em 2016.
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“Buen Camino”

Para garantir lugar nos refúgios municipais, é preciso portar a Credencial do Peregrino. Nessa, o viajante recebe os carimbos de cada ponto de visitação ou albergue, como uma prova de que ele de fato percorreu o caminho. Aos viajantes também é oferecido o “Menu do Peregrino”. São pratos com preço médio de 10 euros, suficientes para dar força aos caminhantes.
Roncesvalles fica na comunidade autônoma de Navarra. Por lá cruzamos cidades como Pamplona – ponto da tradicional corrida de touros pelas ruas centrais – e também por Estella, onde em um vilarejo logo ao lado o peregrino é agraciado com uma fonte de vinho da Bodega Irache. E para chegar a esses locais, basta seguir as setas amarelas ou os totens com o desenho da famosa vieira – ou concha – que estão por todos os cantos, durante todo o caminho.
Da mesma forma, durante todo o trajeto de 800 quilômetros há uma cumplicidade entre os peregrinos. Ao cruzar por um caminhante, é um preceito desejar “Buen Camino”. É assim nas trilhas, nos restaurantes e nos albergues onde as diárias não passam de 10 euros – por vezes o valor é opcional – e os quartos, banheiros e jantares são compartilhados.

Uma jornada, quatro comunidades

Além de Navarra, a jornada cruza por outras três comunidades autônomas da Espanha: La Rioja, Castilla y León e finalmente a Galícia. Na primeira, os principais pontos da peregrinação ficam nas cidades de Logroño, Navarrete, Nájera, e, por fim, Santo Domingo de La Calzada, com seu albergue municipal que completou mil anos em 2019, e onde as dores e tendinites já começam a dificultar cada passo desse peregrino.
Castilla y León possui o trecho mais extenso de toda a caminhada. É onde enfrentamos um misto de lágrimas e sorrisos. Após a belíssima cidade de Burgos, encaramos quase 200 quilômetros pela Meseta Central, um terreno árido e onde a única visão são longos e infindáveis campos com poucos vilarejos. “É onde o peregrino morre, para logo adiante renascer”, alertou um amigo espanhol, David Fernández, ainda no albergue de SJPP.
Para outros caminhantes, como o alogoano Virgílio Agra, 57 anos, que dividiu alguns passos comigo, a Meseta foi ainda mais marcante. “Entre os momentos especiais, destaco a travessia da Meseta. Foi o trecho em que mais cresci, tanto física quanto espiritualmente. As longas retas, o caminhar ao lado das rodovias e a paisagem monótona me levaram a um verdadeiro questionamento quanto ao que me fazia estar lá e o porquê de continuar.”
Aquela certa melancolia perdura até León, onde a graciosidade dos prédios históricos, da catedral, os sabores dos restaurantes de uma das maiores cidades daquela comunidade e a presença de ainda mais peregrinos – muitos iniciam a jornada até

Santiago a partir desta cidade – “devolvem a vida” ao caminhante.

Ainda passamos por Astorga – onde até hoje resiste o famoso Castelo de Gaudí – e Ponferrada antes de chegarmos à divisa com a Galícia, no medieval vilarejo do “Cebreiro”, a 1,3 mil metros de altitude. A partir deste ponto, a perna fica leve. Restam apenas 157 quilômetros para aproveitar as cidades de Triacastela, Samos, Sarria, Portomarín, Melide, Arzúa e Pedrouzo.

O fim da peregrinação

Foram 800 quilômetros em 30 dias. Pisei na Praça do Obradoiro por volta das 11h20min do dia 22 de maio, sob o som de uma gaita escocesa que ecoava entre os arcos dos prédios históricos de Santiago de Compostela. Acompanhado de dois amigos espanhóis e um chileno, caminhei lentamente – e em silêncio – até a fachada do Palácio de Rajoy, atual sede da Presidência da Junta de Galícia. Lá, retirei a mochila das costas, descalcei as botas e deitei no chão. .
Inspirado nos palácios franceses do século XVIII, este edifício fica bem em frente à catedral da cidade, onde até hoje repousam os supostos restos mortais de Santiago. É ponto final da jornada. Um misto de sentimentos. A tarefa cumprida. As dores. A alegria extrema. A exaustão. A saudade de casa. E ao mesmo tempo a saudade dos novos amigos, das paisagens, dos albergues, das lesões e desafios encarados desde SJPP.
Esses sentimentos são únicos. Virgílio, por exemplo, chegou à Santiago três dias depois. “Eu olhava para a enorme catedral, tirava fotos, procurava rostos conhecidos entre os peregrinos na praça até que em determinado momento os olhos começaram a se encher de lágrimas e eu sentei no chão para chorar muito. Não me pergunte por que eu chorei, pois talvez a resposta seja um dos mistérios do caminho”, finaliza.

“O caminho é uma busca interior”

Nelson Spritzer é formado em Medicina, e cientista nas áreas da cardiologia, hipertensão e estresse humano. É igualmente formado em tecnologias de ensino e “Hipnose Ericksoniana”. O gaúcho também é referência no treinamento com Programação Neurolinguística (PNL), uma ferramenta que busca dar ao praticante um elevado domínio e controle das capacidades inconscientes. Estuda a experiência interna e como isso afeta os comportamentos.
A cada dois anos, em média, ele leva um grupo de alunos e praticantes de PNL para caminhar algumas etapas do Caminho de Santiago de Compostela. “Já fui para lá cinco vezes e, em cada uma dessas, realizei um trecho diferente da peregrinação. Pela minha experiência, não é preciso fazer todo o caminho para encontrar o que a gente busca. O efeito é o mesmo fazendo apenas em etapas”, sugere. “E quanto menos pessoas, mais introspectiva será nossa jornada.”
Para Spritzer, o Caminho de Santiago é uma metáfora da vida. “É um símbolo de uma experiência enriquecedora, que serve para compor um processo de mudança interna. É uma busca interior.” Mas é só uma parte desse processo, salienta. “É um ponto de micro-vibração onde fica mais fácil entender alguns fenômenos de percepção, da sutileza da realidade. É um amplificador para a análise da geometria e das formas no estado de ânimo das pessoas.”

“Em nenhum momento pensei em desistir”

A empresária Michele Gonçalves Merlin, 35, mora em Lajeado e por muitos anos sonhou em fazer o Caminho de Santiago. Em março de 2018, após assistir uma palestra de um deficiente físico que completou a jornada, decidiu que chegara o momento dela. “Ele pediu para anotarmos três sonhos e questionou o que estávamos fazendo para realizá-los”, relembra. “Sai de lá decidida.”
Michele marcou a viagem para a Europa na semana seguinte. Passou a ler sobre o caminho e conversar com outros peregrinos. Ela já praticava exercícios em academia, e passou a aumentar a frequência, com ajuda de amigas. “Precisava me preparar.
Fortalecer panturrilhas, costas. Fiz caminhadas longas, de 20, 22, 25 e até 30 quilômetros. Essas todas eu fiz sozinha. Nesses momentos, além do preparo físico, me preparava mentalmente.”
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Ela escolheu o Caminho Português, que inicia na cidade do Porto e cujo trajeto é de 223 quilômetros até Santiago de Compostela. Michele completou a jornada em 10 dias. Como todo peregrino, viveu bons e maus momentos. “Um dos ápices foi quando me senti pertencendo ao caminho ao concluir a etapa mais longa, de 34,5 quilômetros. E também quando comecei a reencontrar as pessoas durante o trajeto, e ao chegar ao cume da Serra da Labruja.”
Entre os momentos mais duros, relembra a saudade da família e o início da peregrinação. “Nos dois primeiros dias eu estava tensa, com medo de me perder. Não estava conectada ao caminho. Passei por trajeto em que caminhei mais de uma hora  com a mesma paisagem, sem encontrar uma pessoa, com chuva. E controlar a mente, os pensamentos, não é fácil. Mas em nenhum momento pensei em desistir.”
Para sentir-se próxima à família, escreveu um diário para a filha. “A cada dia alguém da minha família me acompanhava em pensamento.” Após chegar a Santiago e voltar ao Brasil, lembra, a vida mudou. “Mudou minha maneira de viver. Assim como no caminho, a vida nem sempre é fácil. Não adianta forçar ou acelerar as coisas, tudo tem seu tempo. Com paciência, foco, força e fé, as coisas acontecem”, finaliza ela, que agora pensa em realizar o Caminho Francês.

RODRIGO MARTINI – rodrigomartini@jornalahora.inf.br

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