Cada vez que Marie quase encostava a ponta do nariz no lousa para conseguir ler a lição, confirmava-se que sua dificuldade não tinha nada a ver com o fato de ela ser uma criança que fala o idioma crioulo em uma escola que ensina em português. Seu problema estava na visão, a professora tinha certeza. O que causou surpresa a muitos foi o nível da miopia que acomete a aluna do 1º ano: 6 graus em um olho, 10 no outro.
Apesar de enxergar de modo disforme até poucos dias atrás, Marie Schamma Stephir Adam, 6, é uma das mais aplicadas da turma, conta a docente Rosângela Petter de Mello. “Ela já está alfabetizada. Lê, escreve sem desvios ortográficos e calcula. Tudo direitinho.” Para ajudar a menina enquanto os óculos não chegavam, a professora trocou-a de lugar – tirou da mesa circular que comporta cinco ou seis crianças, e acomodou-a em uma classe comum, a 50 centímetros do quadro.
Foi a professora também que fez a primeira solicitação de uma consulta com oftalmologista. O reforço veio quando o Lions Clube Lajeado fez uma feira de saúde na escola Fernandes Vieira, com teste de acuidade visual. A consulta foi viabilizada por um convênio que a rede estadual tem com a Unimed.
Com a doação das lentes por parte do clube e da armação pela Ótica Lenz, a menina passou ver a vida com nitidez. “Ela chorou quando colocou. Acho que se emocionou”, lembra a voluntária do Lions Ziláh Teresinha Tanuri, que acompanhou a entrega do acessório.
Na escola, os primeiros dias foram de adaptação. A estudante estranhou usar aquele objeto que a diferenciava dos colegas. A professora Rosângela, que também usa óculos, ajudou. “Fiz selfies com ela e mostrei outros alunos que também usam. Quando ela enxergou pelos óculos, disse: ‘tudo grande’”, recorda.
Inspirados por Helen Keller
Segundo a Organização Mundial da Saúde, há cerca de 1,4 milhão de crianças com deficiência visual no mundo, e 90% residem em países pobres. Cerca de 500 mil ficam cegas todos os anos. Em 80% dos casos, o quadro poderia ter sido revertido ou prevenido. Diante desse cenário, o Lions Clube, em todo o mundo, atua para ajudar a prevenir e tratar os males da visão. Aliás, essa tarefa começou há quase um século, explica a integrante do grupo da saúde do Lions Clube Lajeado Norma Einloft.
Em 1925, a ativista Helen Keller inspirou a organização a defender essa causa. Ela nasceu em 1880, no Alabama, e ficou surda e cega antes dos dois anos de idade, por uma doença que os médicos não souberam especificar na época.
Adulta, se tornou uma importante ativista social. “E até hoje, ela nos inspira”, resume Norma. Também integrante do grupo, a voluntária Edilene Thomas Johann explica que os eventos voltados à saúde são feitos periodicamente nas escolas. E quando um aluno precisa de acompanhamento médico, o Lions ajuda a encaminhar via poder público ou na rede particular, por meio de parcerias.
Mais luz natural, menos celulares
A miopia é uma das doenças que mais cresce entre as crianças. Por si só, pode ser tratada com uso de óculos ou lentes de contato. O que preocupa é a prevalência de patologias mais graves que comumente estão associadas a essa, como risco de descolamento de retina e o surgimento de catarata de forma precoce.
Segundo a especialista em oftalmologia pediátrica e estrabismo Bruna Karla Perozzo, da Clínica Revitallis, a miopia está ligada ao crescimento do olho, na maioria das vezes. Enquanto a proximidade excessiva a telas artificiais contribui com esse efeito, a exposição à luz natural contém.
“Tudo está relacionado ao neurotransmissor dopamina. A regulação da dopamina leva à contenção do diâmetro ântero-posterior do olho. As crianças precisam reduzir o tempo no tablet e celular e aumentar brincadeiras ao ar livre”.
Nos países asiáticos, cita, quase 90% das crianças que saem da escola têm miopia. “Isso é assustador. E o Brasil está caminhando para isso. Estima-se que até 2050, metade da população vai ser míope.” Ela destaca que a OMS e a Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica recomendam que crianças não tenham contato com celulares ou tablets antes dos dois anos. Até os cinco, o período de exposição a esses eletrônicos deve ser de no máximo uma hora ao dia, para aquelas com visão saudável.
Mas se a exposição solar é fundamental, a proteção é indispensável. O uso de óculos escuros também deve ser um hábito infantil. Os pais devem se certificar de que haja camada protetora contra radiação ultravioleta nas lentes, e não tratar o item como mais um brinquedo.
Teste do olhinho
O teste do olhinho, feito ainda na maternidade, é importante para detectar doenças graves de visão. Porém, Bruna lembra que trata-se de uma triagem. Não é o suficiente para apontar males em fase inicial, como tumores, nem mesmo graus.
Bebês que tiverem alguma anormalidade no teste devem ser encaminhados imediatamente ao especialista. E aqueles que não apresentarem nenhuma alteração devem fazer uma avaliação oftalmológica completa, inclusive com dilatação da pupila, até os 6 meses.
Como nos primeiros anos de vida o mundo da criança se limita ao que está ao seu redor, é difícil que dê sinais de miopia. É na idade escolar que a situação fica evidente. “Alterações de comportamento e ficar apertando, franzindo os olhos, podem mostrar que a criança não enxerga de longe.”
A especialista lembra que com o surgimento de armações coloridas e lentes seguras para a prática de esportes, os pequenos estão mais abertos ao uso de óculos.
A própria Marie, cuja história abre essa reportagem, já está adaptada, passadas duas semanas da novidade. Voltou a sentar na mesa circular, e tira os óculos apenas quando vai brincar no parquinho.
Sentada no carrossel ao lado dos colegas, a menina – tão tímida diante de desconhecidos – se sente à vontade. Enquanto o brinquedo gira velozmente, por embalo dos próprios ocupantes, Marie sorri. É como se soubesse que essa é uma das poucas ocasiões em que enxergar o entorno borrado é algo bom.
GESIELE LORDES – gesiele@jornalahora.inf.br