Cerveja artesanal: a retomada de um negócio centenário

Vale do Taquari

Cerveja artesanal: a retomada de um negócio centenário

Pequenas e médias fábricas e pubs especializados se espalham pela região. Produção mensal passa dos 250 mil litros. Nas próximas semanas, Lajeado ganha mais dois estabelecimentos. Cervejeiros amadores movimentam mercado de insumos e equipamentos

Cerveja artesanal: a retomada de um negócio centenário

Em 1924, Emílio Kirst abriu uma fábrica de cerveja no distrito de Arroio do Meio. Ali nasceu a Bela Vista, que deu nome à linha, que hoje é o bairro mais populoso do município. A produção era de 200 garrafas por dia.
 
Pouco mais de uma década depois, Valentin Friedrich criou a sua Cerveja Gaúcha, em um prédio ao lado da casa da família, na rua Carlos Spohr Filho, bairro São Bento. Produzida em levas de 500 garrafas, era envazadas manualmente e entregue aos consumidores em carroça puxada por cavalos. Mais tarde a instalação da fábrica da Polar, em Estrela, representou a consolidação do mercado cervejeiro regional.
 
Depois de quase 100 anos, a produção de cerveja em pequena e média escala movimenta uma série de negócios no Vale do Taquari. Uma cadeia produtiva que envolve a agricultura, indústria de transformação, comércio e eventos.
 
Em meados de 2005, o mercado de microcervejarias viveu uma retomada. De 2014 para cá, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) registraou duas novas fábricas a cada três dias. No país, já são mais de mil. Dez anos atrás, eram em torno de 100.
 
A volta da marca Bella Vista, pela Fruki em 2018, mostra a força com que o setor ressurge. A capacidade de produção passa de um milhão de litros diários. Parte de bebida é produzida em Campo Bom e o restante em uma fábrica no Paraná. Até o fim de 2020, a nova unidade deve estar em operação em Paverama.
 
Em número de cervejarias, o Rio Grande do Sul divide a liderança com São Paulo, com 210 em cada. Estima-se que o número seja pelo menos o dobro, pois o MAPA registra apenas as fábricas. Quase diariamente surgem novas marcas que não possuem fábrica própria, as chamadas “ciganas”. As artesanais ainda respondem por cerca de 1% do mercado nacional de cervejas, mas crescem a cada dia.
 
Em Lajeado, há pelo menos quatro pubs dedicados às cervejas artesanais. Em toda a região, há pelo menos outros quatro estabelecimentos, em Estrela, Teutônia e Bom Retiro do Sul. E o mercado não para de crescer. Nos próximos dias, outros dois pubs serão inaugurados na cidade polo da região, com capacidade para mais de 200 pessoas.
 
Devido ao crescimento do mercado local, cervejeiros do Vale reivindicam espaço na Rota das Cervejarias Artesanais, criada em 2018 por meio de lei estadual. O roteiro inclui 22 municípios situados entre o Vale dos Sinos e a Serra.
 

Primeiro pub especializado de Lajeado recebe quatro mil consumidores por mês. Em menos de dois anos, negócio se tornou sucesso

Primeiro pub especializado de Lajeado recebe quatro mil consumidores por mês. Em menos de dois anos, negócio se tornou sucesso

Mil cervejeiros no Vale

Além das cervejarias profissionais, cresce também o mercado de produção caseira. Grupos de amigos se reúnem para produzir uma bebida de mais qualidade, de acordo com o gosto pessoal e incluindo o processo de fabricação ao ritual de brindar uma boa cerveja.
 
Este movimento gera outro negócio que se integra à cadeia produtiva: a venda de insumos. Três lojas em Lajeado comercializam os equipamentos e matérias primas. São estabelecimentos voltados principalmente aos cervejeiros amadores, os chamados paneleiros. Com R$ 1 mil, o iniciante sai da loja com todo o equipamento para produção de até 20 litros e os insumos para a primeira leva.
 
No Vale do Taquari, são cerca de mil produtores de cerveja artesanal, de acordo com o diretor financeiro da Associação dos Cervejeiros Artesanais do Rio Grande do Sul (Acerva) de Estrela, João Bastian. O número inclui profissionais e amadores. Só em Estrela, a entidade estima mais de 100 cervejeiros. A entidade tem 30 associados entre apreciadores, cervejeiros amadores e profissionais
 
“O legal é poder consumir a cerveja que você mesmo produz. Nunca uma receita é igual à outra, então se pode criar novas receitas, experimentar novos estilos. E o sucesso da cerveja artesanal é justamente sair do comum, fazer harmonização com pratos especiais”, afirma Bastian.
 

A minha cerveja eu mesmo faço

Empresário do ramo de som automotivo em Estrela, Eduardo Spellmeier, começou a se interessar por cerveja artesanal em 2012, após experimentar uma que ganhou de presente. A surpresa positiva despertou também o interesse na produção. “Um amigo fez o curso e me convidou para ajudar no processo. Nos reuníamos todas as quintas-feiras na casa dele. Era panela para lavar, garrafa para limpar. Começávamos a trabalhar às 18h e só terminávamos de madrugada”, recorda.
 
A organização para a produção exige um cuidado especial. Conforme Spellmeier, “são pequenos detalhes” que fazem toda a diferença no resultado final. O trabalho que iniciou numa garagem se expandiu aos poucos. A cada cerveja produzida, ficava a certeza de que estava trilhando o caminho certo. “Algumas não saíram tão boas, mas sempre tentamos descobrir as falhas e elaboramos novas receitas. A busca por aromas diferenciados faz com que se crie curiosidade e aumente o sucesso dos eventos”.
 

“O Vale do Taquari é a próxima fronteira do mercado cervejeiro”

Cervejeiro profissional e presidente da Associação Gaúcha de Microcervejarias, Diego Machado estima que a volta das cervejarias artesanais tenha ganhado corpo em meados de 2006. “Era um grupo de 14 pessoas fazendo cerveja em panela, aqui em Porto Alegre. Essa foi a retomada. É um processo ainda jovem, mas consistente”, define.
De acordo com Machado, os fatores que fizeram o setor se desenvolver ao longo destes anos estão muito atrelados a uma mudança de comportamento dos consumidores, que passaram a preferir beber menos quantidade, com mais qualidade e variedade de estilos. Ao longo dos anos, as multinacionais, que ainda dominam a maior parte do mercado, deixaram uma lacuna na qualidade e diversidade do produto. Das dezenas de marcas que se encontrava nos bares e supermercados, quase todas eram dos estilos pilsen ou lager.
 
A associação foi criada em 2012 e reúne 71 cervejarias espalhadas pelo Rio Grande do Sul. O estado lidera o setor em praticamente todos aspectos: prêmios, diversidade de estilos e número de cervejarias relativo à população. No RS, Porto Alegre e região metropolitana representam o maior mercado, com metade dos associados. Em segundo lugar, a Serra é outra área em processo de consolidação avançado. “O Vale do Taquari é a próxima fronteira do mercado cervejeiro”, define.
 
A baixa concorrência, boa renda per capita e a influência cultural da colonização europeia são as características que criam o potencial do Vale. “Na região existe muita oportunidade. Se eu fosse me dedicar a algum negócio de cerveja no RS, certamente seria em Lajeado”, conclui.
 

Pubs se proliferam pelo Vale

Menos de dois anos após a inauguração, Mário Dutra comemora os resultados do seu pub, no Centro de Lajeado. O estabelecimento foi o primeiro da cidade especializado em cervejas artesanais, com 22 torneiras. A ideia surgiu da amizade com o dono de uma cervejaria de Santa Cruz do Sul.
“Eu conheci o pub dele, que já tem oito anos. Achei interessante o modelo e pensei: ‘faz falta um deste em Lajeado’”, recorda.
 
A escolha e reforma da casa duraram um ano e meio. Logo na abertura, o sucesso foi imediato. Por mês, cerca de 5 mil pessoas passam pelo local, consumindo 4 mil litros de cerveja, de acordo com a estimativa do empresário. No verão, o movimento cresce ainda mais.
 

Cerveja também é gastronomia

A abertura de dois novos estabelecimentos nas próximas semanas em Lajeado, no Centro e no bairro Americano, é um indício do crescimento do mercado local. Foi o que fez Rafael Pedron se mudar de Porto Alegre. Ele é somelier residente de um pub que tem inauguração prevista para o dia 19. Pedron explica que a ideia do espaço é aliar cervejas de qualidade e alta gastronomia.
 

Rafael Pedron e jarbas Bandeira inauguram pub em lajeado nos próximos dias, aliando cervejas artesanais à alta gastronomia

Rafael Pedron e jarbas Bandeira inauguram pub em lajeado nos próximos dias, aliando cervejas artesanais à alta gastronomia


“Trabalhamos com pratos que hoje são oferecidos por grandes cadeias, mas com um estilo nosso. Em muitas receitas, a gente usa nossa cerveja na produção do alimento. Então, a cerveja entra na cozinha”, afirma Pedron. O local contará com 19 estilos, sendo 10 receitas próprias, produzidas no local. A fábrica ocupa um espaço de 50 m² dentro da casa, que tem área de total de mais de 370m². O local conta ainda com um jardim.
As receitas são desenvolvidas faz dois anos pelo mestre cervejeiro Jarbas Bandeira. Com dez anos de experiência, Bandeira trabalhou com marcas de referência no estado.
 
“A gente se preocupa com a qualidade, só utilizamos maltes importados. Temos uma witbier de damasco, que não vai ter em nenhum outro lugar”, garante. O carro-chefe é a american blonde ale. A cervejaria tem capacidade para produzir seis mil litros por mês.
 

Desenvolvendo a matéria prima regional

Os insumos necessários para a produção da cerveja – malte, lúpulo e levedura – são quase todos importados. O desenvolvimento da matéria prima local é um dos desafios do setor.
 
Em Santa Clara do Sul, o agricultor Elson Algayer viu no lúpulo uma possibilidade de diversificar sua produção de orgânicos, que já contava com frutas e hortaliças. No início de 2016, ele começou a desenvolver as primeiras mudas.
 
“No início não se tinha informação nenhuma, nem na internet. Quando eu recebi as mudas, elas vieram em um potinho de café. Hoje elas saem daqui fortes, eu boto em vaso”, diz. Outros produtores, de Estrela e Teutônia, já cultivam mudas produzidas por Algayer. A ideia é que outras propriedades do município adotem a cultura do lúpulo.
 

Três anos atrás, Elson Algayer começou a produzir lúpulo orgânico em sua propriedade em Santa Clara do Sul. Na semana passada, a colheita rendeu a primeira cerveja, do estilo APA

Três anos atrás, Elson Algayer começou a produzir lúpulo orgânico em sua propriedade em Santa Clara do Sul. Na semana passada, a colheita rendeu a primeira cerveja, do estilo APA


 
Em termos financeiros, a produção ainda é uma aposta, mas já começa a render frutos. Após muitos testes, no último fim de semana foi lançada a primeira cerveja feita com a matéria prima local. A qualidade da bebida foi aprovada pelo produtor e pelo empresário João Giovanella, proprietário da cervejaria.
 
“Sempre gostei da minha APA, embora tenha outras marcas que disputam a minha preferência. O lúpulo deu uma personalidade incrível para a cerveja. Até agora, é a melhor APA que já tomei na vida”, afirma Giovanella. Ele integra a Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo (Aprolúpulo), criada em 2018 e que conta com mais de 80 associados. Giovanella explica que a ideia de produzir lúpulo não veio sozinha.
 
“Nosso projeto acredita na integração da cadeia produtiva local. Quando fizemos o plano de negócio, prevemos que aos poucos teríamos parceiros produzindo insumos locais que nos atendessem”.
 

Do velho alambique do pai ao Airbnb

Vanda Schneider fala rápido e a velocidade do seu raciocínio é proporcional ao seu impulso para empreender. De 2002 para cá, ela transformou a propriedade onde nasceu e se criou, na Linha São Jacó, em Teutônia, de inoperante em um exemplo de empreendedorismo rural. Tudo começou com a retomada do velho alambique do pai.
 

Vanda Schneider: “Eu disse: em um ano estaremos produzindo. E fizemos.”

Vanda Schneider: “Eu disse: em um ano estaremos produzindo. E fizemos.”


Hoje a propriedade conta ainda com uma cervejaria, espaço para eventos com capacidade para 80 pessoas e hospedagem, que funciona por meio do aplicativo AirBnb.
 
A produção de cerveja iniciou em 2012, obra do seu filho, Rafael. “Iniciei alguns testes no fogão a lenha do meu avô. Não deu muito certo, mas meu irmão bebeu mesmo assim”, brinca Rafael.
 
Em dois anos de tentativas e erros, ele começou a desenvolver as próprias receitas. A marca dispõe de sete estilos diferentes e a produção é de 160 litros litros por mês.  É a produção de cerveja que movimenta os eventos. Além dos encontros semanais, aos sábados, de outubro e março, a família aluga o espaço para casamentos e atividades corporativas. Para os próximos meses, já são três eventos agendados.
 
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MATHEUS CHAPARINI – matheus@jornalahora.inf.br

COLABORAÇÃO: Mateus Souza

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