A passagem do passaredo é uma das primeiras visões do aposentado Carlos Quadros, 58, pela manhã. Morador da Rua Francisco Oscar Karnal, sempre por volta das 6h, observa os bandos percorrerem o céu em direção ao desconhecido – embora muitos apostem que eles voem para os arredores do Rio Taquari. Quando o tempo está bom, esse é o primeiro de pelo menos dois encontros diários entre o representante dos humanos e as aves.
Quadros é um dos apreciadores do pôr do sol à beira da lagoa do Parque dos Dick. Ao lado da esposa, Ivana, 55, ele descansa em uma cadeira de praia de frente para a “ilha”, um apanhado de vegetação que perpassa a linha d’água, formando um pequeno monte. Livre das músicas, gritos, buzinas e narrações de eventos que agitam o local nos fins de semana, o casal encontra paz nos ruídos da natureza, a trilha sonora do parque em dias comuns.
Enquanto compartilham o chimarrão, eles observam aquele ponto quase no centro da lagoa escurecer mais rápido do que o entorno. É a impressão que a chegada dos tapicurus e das caraúnas causa a quem vê de longe. Também conhecida como maçarico-preto ou maçarico-do-banhado, a primeira espécie tem cerca de 50 centímetros e um bico fino amarelo vivo. Mas, como são usados para chafurdar e pegar comida, geralmente estão sujos. A outra é formada por animais com o bico mais encurvado, de plumagem castanho-escura.
“Às vezes, ali está cheio deles. Com a iluminação de Natal que colocaram, dá para ver melhor”, comenta Quadros. À noite, é possível enxergar apenas os olhos dos animais, que formam uma rede pontilhada sobre o corpo d’água.
Diante da cena, o pintor Oséio Grilli, 26, se impressiona. Morador de Marques de Souza, ele passeava pelo parque na noite da última quinta, 24. Mesmo próximo da vida interiorana, nunca tinha visto tantos pássaros reunidos. “É até bonito de ver, né? Incrível! Lá em Marques, em volta dos açudes tem também, mas não chega a ser nem metade desses.”
Observação
A graduanda em Biologia Pauline Amanda Vognach, 36, é uma admiradora das aves, gosto que puxou do pai. De tanto analisar esses animais, desenvolveu uma audição sensível, capaz de identificar quando um novo canto ecoa no ambiente.
Integrante do Clube de Observadores de Aves dos Vales do Taquari e Rio Pardo, ela já investigou as espécies que vivem no Parque dos Dick. Os tapicurus, explica, procuram áreas alagadas e abertas, e saem em busca de comida durante o dia – crustáceos, moluscos, caranguejos, sementes e folhas.
Estão sempre em grupos, exceto na época da primavera, quando se separam em casais para preparar os ninhos em locais lamacentos. Normalmente, colocam quatro ovos por vez, com casca azul.
Raras ocasiões, essa coloração também pode ser vista nas penas, mas isso depende da ave estar no solo, com as asas abertas e recebendo favorável incidência de luz. “Vale lembrar que a chegada deles ocorre normalmente ao entardecer, quando o Sol já está ‘mais baixo’, por isso talvez não vejamos essas nuances.”
A caraúna, espécie muito parecida com o tapicuru, tem algumas variações na dieta: ingere também serpentes, peixes, anfíbios e lagartinhos. Pauline acredita que o fato de os bandos estarem isolados em uma área urbana (portanto, livre de predadores) contribui para a abundância das aves.
Ritual de chegada
Enquanto contornam o poleiro em busca do melhor lugar, as aves dão um pequeno show ao público. Para a técnica em enfermagem Marinês Von Muhlen, 46, é um dos momentos mais esperados. “Eles fazem todo um ritual. No outono e primavera, é ainda mais bonito”.
Apesar de morar em Arroio do Meio, a merendeira Márcia Schmitz, 55, é figura carimbada no Parque dos Dick aos domingos. Aproveitando as férias, decidiu desfrutar da tranquilidade durante os dias úteis da semana passada. “Moro em apartamento, então a gente chaveia e se manda para cá.” Em uma ocasião, levou os pai, Sírio Schmitz, 80, a madrasta, Diva Prediger, 79, e o afilhado, Maurício Haag Schmitz, 8.
Diva se encantou com a natureza, e o pequeno Maurício levou um anzol de brinquedo para se divertir. Criado na colônia, Sírio matou a saudade de ver tantos espécimes ao mesmo tempo. “Quando eu era guri, a gente até mirava uns com o estilingue. Hoje em dia não tem mais tanto. Acho que é por causa dos venenos que colocam nas roças”, acredita.
GESIELE LORDES – gesiele@jornalahora.inf.br