A placa de madeira com o número 180 pintado a mão e instalada de forma precária em frente à residência de Luci Queli Dutra Dias é mera decoração. Não há qualquer legalidade na identificação do terreno com pouco mais de 100 metros quadrados, comprado por R$ 4 mil de forma clandestina. Sem licença, registro ou tampouco escritura, o terreno público pertence ao município que, agora, estuda formas de legalizar toda a área invadida do bairro Santo Antônio.
Luci tem 31 anos e não queria morar ali. Mas a falta de emprego e os altos custos da vida na área mais central empurraram ela e o marido para o terreno irregular. Antes disso, há cerca de três anos, moravam na região conhecida por “Cantão do Sapo”, no centro de Lajeado. Lá, pagavam cerca de R$ 450 de aluguel por uma casa de alvenaria. “Perdi meu emprego e ficou insustentável manter aquela moradia”, lamenta.
O terreno clandestino ainda não foi quitado. “Estamos pagando em prestações. Cerca de R$ 50 por mês. Às vezes R$ 100. O que sobra no fim do mês”, resume ela. Já a construção da pequena casa de madeira foi toda com mão de obra própria. “Eu e meu marido que erguemos. Compramos material em ‘briques’ e, aos poucos, construímos nosso lar. Antes disso, moramos de favor na casa de amigos.”
Nos fundos, junto à criação de galinhas da família, um banheiro improvisado tem água potável. Mas tudo é de madeira. Improvisado. Não há qualquer saneamento básico à disposição do casal. Pelo terreno, passa também uma canaleta de efluentes domésticos. Está aberta, sem cobertura. No calor do verão, o cheiro é insuportável. Assim como a presença dos mosquitos. “Tive que tampar esse esgoto com madeiras. O buraco tem mais de três metros de altura. Eu mesma já caí ali dentro.”
A renda familiar do casal chega a R$ 1,2 mil por mês. Ela recebe pouco mais de R$ 90 do programa federal Bolsa Família, e busca aumentar a receita com a venda de pães caseiros, mas sem sucesso. O resto do valor é garantido com o emprego do marido. Eles não pagam pela energia elétrica, instalada de forma precária na residência, por meio de fios desencapados e postes de madeira feitos com troncos de árvores retiradas da mata localizada ao lado. “Uma gambiarra”, admite.
Sem endereço, nada de emprego
Luci, que vive na esquina da Rua Ibiaçu com uma via ainda sem nome – ambas de estrada de chão –, tem dificuldades para melhorar a situação financeira. Nessa sexta-feira, conseguiu nova entrevista de emprego. Entretanto, a falta de um endereço fixo legalizado impede a contratação dela por parte das empresas. “Hoje tive que pegar endereço de água e luz de outra pessoa”, reclama.
A vizinha dela veio de Charqueadas, onde responde a processos penais. Ela estava sem energia elétrica nessa sexta-feira. Vive “de favor” em uma precária casa de madeira a poucos metros da residência de Luci. No local, mora com a pequena filha. “Nós ficaríamos muito agradecidos de receber uma moradia melhor. Eu tenho muito medo da fiação elétrica que passa por aqui”, reclama.
A assistente social Cassiana Cardoso passou duas semanas de dezembro visitando os moradores da área invadida que pertence ao governo municipal. “Em tese, as pessoas querem fugir do aluguel”, diz. Ela lamenta o excesso de clandestinidade naquela região da cidade. “As pessoas moram sob fios de alta tensão. Algumas não têm água e luz. Aquelas que têm pagam para pessoas que terceirizam esse abastecimento de forma clandestina”, denuncia.
“São 146 terrenos invadidos”
A prefeita em exercício, Glaucia Schumacher, fala sobre a situação caótica do Santo Antônio. Segundo a gestora, a maior concentração de áreas invadidas está naquele bairro. “Para regularizar a situação desta área específica, iniciamos um projeto de loteamento popular a ser instalado na área lindeira à invadida, com o objetivo de transferir estas famílias. O projeto está em fase de análise prévia. Já contratamos o serviço de topografia da área”. Ainda não há estimativa de custos.
São pelo menos 146 terrenos com algum tipo de construção clandestina. No estudo realizado em dezembro, foram cadastradas 63 famílias. A estimativa é de que mais de 500 pessoas vivem nesses locais. “Será preciso realizar um trabalho de atendimento multidisciplinar com as famílias. Não basta o interesse em fazer o loteamento popular, é preciso convencê-las a deixarem as casas em que vivem para morar em um local regularizado”.
Desde janeiro de 2017, comenta a prefeita em exercício, o município vem realizando de forma sistemática a regularização da propriedade de imóveis, com a outorga de escrituras públicas (doação das áreas para os munícipes), conforme autoriza a legislação municipal. “Já foram regularizados 76 imóveis, com escrituras públicas entregues, e temos em torno de 50 processos em andamento”, diz.
Por fim, a assistente social alerta. “Há muito mais casas, mas em áreas que não pertencem à prefeitura”.
“Problema recorrente no país”
Para o arquiteto urbanista e professor da Univates, Augusto Alves, o problema no Santo Antônio é uma síntese da crise habitacional do Brasil. “Por um lado, há carência de unidades para a população pobre, que se instala do jeito que dá. Por outro, o poder público deveria cumprir papel mais ativo para evitar essas invasões”, salienta. “Sabemos também que, em alguns casos, há uma prática de invasões organizadas, com a certeza de que, no futuro, terão o terreno regularizado”, observa.
Para o especialista, é preciso mais empenho no planejamento urbano. “Essa questão passa fundamentalmente pela gestão urbana, e muitas vezes as administrações públicas não possuem equipes adequadas. Não basta só resolver problemas imediatos ou pontuais. É preciso ter uma gestão que monitora essas possibilidades, assim como as áreas de risco, APPs. Afinal, uma vez instalados, é difícil, social e politicamente, evacuar essas pessoas do local escolhido por elas”, finaliza.
RODRIGO MARTINI – rodrigomartini@jornalahora.inf.br