Ainda sem ter a dimensão do conflito ao qual havia acabado de sobreviver, um grupo de soldados brasileiros devorava o pão entregue pelas equipes de apoio. A guerra mais cruel da história havia terminado, e finalmente eles poderiam trocar a roupa imunda pelos meses de uso e dormir em algo mais confortável do que o chão de terra batida da Itália.
Quando um ragazzo de olhar perdido, tão sujo quanto eles – mas muito mais assustado – se aproximou, os pracinhas verde-amarelos não demoraram em oferecer comida. Tão logo a criança encostou no alimento, um soldado americano deu um tapa na mão infantil, arremessando o pão para longe. “Vocês estão alimentando para daqui uns anos ele estar guerreando contra nós?”, esbravejou.
Essa foram as poucas palavras proferidas pelos aliados que o ex-combatente José Vedoy da Silva, 97, lembra de ter compreendido. Foram o suficiente, porém, para mostrar que os EUA não brincavam em serviço – e foi por causa deles que o brasileiros não foram massacrados. “Aquele menino não tinha culpa. Ele não sabia de nada”, comenta, ainda comovido.
Em 1944, Seu Dedé, como é conhecido o ex-combatente, servia no quartel de Santa Maria quando foi enviado para integrar a Divisão de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira, com outros 25 mil brasileiros, com a missão de combater os países do Eixo.
Atualmente, a fragilidade dos sentidos dificulta a comunicação com Vedoy. Com a audição reduzida e a fala comprometida, ele precisa de pequenas pausas para lembrar o nome de certos elementos, como o cantil, utensílio usado para transportar água e que os soldados penduravam no cinto.
Narra que, após uma viagem de trem ao Rio de Janeiro, viajou por 15 dias de navio até Nápoles, de onde o grupo se dividiu para adentrar o território italiano. Daquela época, destaca alguns episódios. Não dá detalhes sobre os momentos em que teve que abater inimigos, mas confirma que, em alguns momentos, a luta era quase corpo a corpo, tamanha a proximidade entre as tropas. “O comandante disse: ‘não tem isso de dói aqui, dói ali. Temos que continuar’.”
Segundo ele, não havia opção a não ser avançar. Os únicos que podiam retroceder eram os médicos e enfermeiros que recolhiam os mortos e acudiam os feridos. A campanha brasileira na Itália resultou em cerca de 450 mortos e 3 mil feridos, mas Seu Dedé garante não ter sofrido nenhum arranhão.

No dia em que recebeu a Medalha da Vitória, Seu Dedé também ganhou um quadro do governo de Boqueirão do Leão, sua cidade natal
Resistência
Foi há pouco mais de um mês que ele sofreu sua lesão mais grave. Na casa onde morava em Boqueirão do Leão, tropeçou, quebrou a perna e teve que colocar platina. A família se admirou com a resistência do idoso. Uma das noras, Isolete Vedoy, 61, chegou a pedir para o médico se não seria o caso do ex-combatente começar a tomar medicamentos, como ocorre com a maioria das pessoas quase centenárias. “Ele disse que não, que ele não tem nada”.
Casado com Isolete, Darcy Vedoy, 63, acolheu o pai em sua casa, no Jardim do Cedro, após a cirurgia. Foi ali que, na terça-feira, 11, ele recebeu a Medalha da Vitória, por representantes do 7º Batalhão de Infantaria Blindada de Santa Cruz do Sul.
O filho conta que Dedé é de falar pouco, muito tranquilo e independente. Faz até a barba sozinho. Por causa da fratura, precisa usar andador, mas às vezes esquece – levante e dá os primeiros passos carregando o utensílio no alto, como quem remove um obstáculo. “Quando dá gripe, ele toma um pouco de cachaça com café preto. E, no almoço, não pode faltar um cálice de vinho.”
Se há um porém na longevidade do veterano é ter visto três companheiras falecerem – a última, há dois meses. Sua primeira esposa, Erna Berghahn da Silva, morreu há cerca de 30 anos. Com ela, teve nove filhos, 26 netos e 24 bisnetos.
Monte Castello
Durante o combate, Vedoy não soube notícias da família, moradora da comunidade de Passo das Pedras Brancas. Afinal, o acampamento não tinha endereço. Como nunca foi para a escola, dependia da boa vontade de outro soldado – um “moreno, grandão”, cujo nome ele se esqueceu – para enviar cartas aos pais.
O momento mais desgastante foi a Batalha de Monte Castello. As forças alemãs estavam em posição privilegiada. Os brasileiros tiveram que cavar tocas no chão para fugir das balas. “Era uma rajada, uns mil tiros por minuto”, estima.
Apenas no final do inverno, em fevereiro de 1945, com ajuda da 10ª Divisão de Montanha do Exército Americano e de ataques aéreos, venceram os inimigos. “O morro ficou capinado de tanta bomba”, lembra. Após o fuzilamento de Benito Mussolini e o suicídio de Adolf Hitler, na prática, o conflito era tido por acabado em maio de 1945 – embora o Japão se rendesse apenas em agosto, após bombas nucleares atingirem as cidades de Hiroshima e Nagasaki.

José Vedoy (D) em uma das poucas fotos da época em que foi enviado à Itália
“Voltei mais gordo”
Com o fim dos ataques e do frio rigoroso, os soldados puderam lavar a farda militar, em um rio italiano. Mas Dedé respirou tranquilo quando, ainda no navio que transportou os brasileiros de volta, reconheceu o solo pátrio. Uma festa recepcionava os pracinhas no Rio de Janeiro. Antes de voltar ao RS, fez turismo pela Cidade Maravilhosa, com direito a passeio de teleférico.
Em 14 de agosto, Vedoy chegou a Lajeado. Foi recebido por autoridades políticas e religiosas no Colégio Madre Bárbara, onde foi homenageado como “herói” de uma “sublime vitória na Segunda Conflagração Mundial”, conforme registrado (provavelmente por uma freira) no verso de uma foto antiga.
Em Boqueirão, seus pais carnearam um boi para receber praticamente toda a comunidade em uma celebração. “Só o padre não pode ir”, recorda. Seu prato preferido, contudo, passou a ser revirado de feijão com toucinho de porco. Ao que tudo indica, uma influência da vida no front. “Os americanos davam um lata com um feijão bem vermelho e salsichão. Que feijão bem bom! Acho que voltei mais gordo para o Brasil”.
Gesiele Lordes: gesiele@jornalahora.inf.br