O apito da Maria Fumaça ecoou em oito cidades do Vale, colocando fim a uma espera de 20 anos. No sábado, 1º, as estações férreas e as margens dos trilhos que cortam a região foram ocupadas por famílias e amigos curiosos para ver – alguns, pela primeira vez – um trem de passageiros.
Tudo começou, porém, na Serra. Em Guaporé, a partida da locomotiva a vapor, prevista para às 15h, atrasou duas horas. Em função da chuva de sexta-feira, 30, alguns obstáculos dificultaram a saída da locomotiva de Passo Fundo.
Mas nem por isso a população desanimou. O casal de aposentados Lurdes Milesi Ghiggi, 60, e Sérgio Luiz Ghiggi, 54, levou a neta, Gabriele Ghiggi Paixão, 15, para assistir à atração. Lurdes diz que mora na cidade há “toda a vida”, mas nunca havia estado na estação. “Não tinha nada aqui. Ia vir fazer o quê? No fim, somos turistas também.”
Entusiasta do turismo, José Luiz Martelli, 63, não perdeu a oportunidade. Morador da Capital das Joias, vê o passeio de trem como uma iniciativa valiosa para o desenvolvimento local. “Isso poderia reativar os grupos típicos, que estão meio parados. Espero que atraia não somente visitantes de outros estados, como também de fora do país.”
No momento em que a turma com cerca de 50 pessoas – autoridades políticas, empresários e imprensa – embarcou, a monitora de educação Márcia Moccellin, 31, precisou consolar a filha, Yasmin, 7. Assim como outras crianças, ela choramingava pedindo para entrar no veículo inusitado. “A expectativa é que dê certo. No que depender da minha nenê…”
Serviço de bordo
Os passageiros disputaram os lugares nas janelas do vagão principal. No início, foram anunciadas as normas de segurança: é proibido ficar nas varandas entre os vagões, fumar e colocar cabeça e braços para fora – além do perigo de decapitação, o atrito com os trilhos libera faíscas que podem causar queimaduras.
O risco, porém, foi calculado por todos que experimentaram o Vale de uma vista que apenas um trem poderia proporcionar. Depois de entender como funciona a abertura das janelas – são pesadas e devem ser soltas apenas depois que as travas laterais estiverem firmes – ninguém mais controlou as mãos.
Manuseavam, pelo lado de fora, câmeras e celulares em pontos que ultrapassavam os 140 metros de altura. Mesmo os mais precavidos, vez ou outra, eram chicoteados pelos galhos que adentravam o carro em lugares de mata fechada.
O serviço de bordo ainda incluiu um lanche, composto por produtos do Vale – morangos, cri-cri, chocolates, bolo salgado e suco de uva ou laranja. No banheiro, a janela ficava na altura do vaso sanitário, exigindo atenção dos usuários. Nos trechos urbanos, onde havia plateia, a distração poderia custar uma exposição indesejada. Por outro lado, na passagem pelos túneis, a escuridão era completa (não havia luz elétrica), e também dificultava as tarefas fisiológicas.
Mas esse era um detalhe – que deve ser reparado futuramente – diante da chance de deslumbrar a paisagem entre Guaporé e Colinas, passando por Dois Lajeados, Vespasiano Corrêa, Muçum e Roca Sales, em 26 túneis e 17 viadutos. “É um passeio fantástico. Vai vingar. O importante é que a comunidade também tenha a oportunidade de participar”, comentou Claus Humberto Wallauer, gerente do Sicredi Estrela Oriental.
Entre cascatas, plantações e montes, dois momentos foram os principais. O primeiro foi a passagem pelo Mula Preta e pelo Viaduto 13, o mais alto da América Latina. Nesse trecho, o trem diminuiu a velocidade – que, no limite máximo, chegava a 42km/h na Ferrovia do Trigo. Os passageiros se espremiam principalmente do lado direito do vagão, de onde se avistava o Rio Guaporé.
A passagem por Muçum também foi marcante. Como a estrada de ferro passa por cima do município, foi possível enxergar praticamente todo o território, pouco antes de chegar ao limite do Rio Taquari. E os períodos de chuva no dia ensolarado resultaram em um arco-íris duplo, formando um cenário à parte.
Recepção calorosa
Em Roca Sales, uma festa tomou conta da estação. Ao redor de mesa com cuca, linguiça e queijo, moradores trajavam roupas típicas italianas e cantavam músicas gaúchas ao som da gaita.
Por causa da chuva, os passageiros desembarcaram em Colinas, mas o trem ainda passou por Estrela, Teutônia e Paverama. Na Cidade Jardim, após quase seis horas de viagem, a noite natalina teve foguetes e fechou com a chegada do trem iluminado, levando, na varanda, o Papai Noel. Ao som de Jingle Bells, ele acenava e jogava balas para crianças dispostas a correr até onde pudessem para acompanhar a Maria Fumaça.
A expectativa da Amturvales é que a atração seja implantada a partir de agosto de 2019. Mas, depois de duas décadas, a comunidade do Vale tem pressa, a exemplo da auxiliar de limpeza Paula Scherer Guth, 37. “Agora, vamos ver se o trem traz o Coelho da Páscoa também.”
Gesiele Lordes: gesiele@jornalahora.inf.br