Maria Romy Mallmann visitava os pais, que moravam próximo à Praça da Matriz. Era uma quarta-feira chuvosa, dia 6 de novembro de 1968. Maria, na época com 30 anos, estava com os familiares, conversavam e tomavam café. A normalidade foi interrompida quando o irmão mais velho invadiu a cozinha chorando. “Mãe, um desastre horrível com as freiras!”, anunciou.
Maria ajudou a acudir a matriarca, que “quase se foi” com o baque. Passado o susto, a missão era auxiliar na tentativa de resgate das quatro freiras mais amadas pela comunidade. Maria ficou em casa com o filho mais novo. Seus pais, o irmão e as duas filhas mais velhas saíram para ajudar madre Miriam e as irmãs Osita, Maria da Glória e Lídia.
As religiosas pertenciam à equipe diretiva do Colégio Santo Antônio, na época mantido pela Associação das Irmãs Franciscanas. Elas voltavam de Santa Cruz do Sul, onde tinham compromissos regulares na arquidiocese.
Estavam em uma caminhonete Rural Willys, dirigida por uma delas, que se desgovernou sobre os tabões da Ponte do Stangler e caiu de ‘bico’ no Arroio Estrela. A construção da barragem de Bom Retiro do Sul, que começou em 1958 – e seria concluída apenas em 1976 – , estava paralisada, e a vazão de água que chegava do Rio Taquari ao arroio era intensa.
Na medida em que a notícia se espalhava, os comércios fechavam as portas. O resgate era aguardado por uma multidão tão atônita quanto triste que lotou a rua Coronel Britto e arredores. “Estrela ficou totalmente abatida. Ninguém sabia o que fazer”, lembra. Quem morava mais longe acompanhou o desfecho pela transmissão da rádio Alto Taquari. Nos dois dias seguintes ao acontecimento, a emissora não veiculou músicas como forma de luto.
O filho que ficou em casa com Maria é João André Mallmann, 58, hoje integrante do Instituto Histórico e Geográfico do Vale do Taquari. Um dos fatos que lhe chama a atenção ao falar sobre o episódio foi o acidente do caminhão dos bombeiros que se dirigia até o local. O veículo tombou em uma curva. “Eles quiseram fazer tudo tão rápido que perderam a noção. Foram socorridos e tiveram ferimentos leves, mas seguiram para ajudar as freiras.”
Carisma e benevolência
Não foi possível evitar o pior. As quatro morreram afogadas e foram retiradas da água quando a noite já havia avançado. “Podiam morrer 30 freiras, mas não aquelas quatro. Elas eram as queridinhas do povo”, lembra Mallmann. Segundo o pesquisador, foi o maior velório de Estrela, superando o de personalidades como o dirigente da Polar, Arnaldo José Diel.
O pesar da comunidade, segundo lembram mãe e filho, se justifica pelo carisma das freiras. Mallmann diz que em épocas de cheia as religiosas remavam caicos para ajudar quem precisasse atravessar áreas inundadas. Os corpos foram velados na Igreja Matriz, que ficou pequena para tanta gente. “A igreja estava lotada o tempo todo. Era tanta gente, que nem conhecíamos muitos”, lembra Maria.
As cerimônias fúnebres foram acompanhadas pelo arcebispo Vicente Scherer. O cortejo percorreu a cidade até o cemitério católico, onde ocorreu o sepultamento. “Ainda hoje sempre rezamos por elas quando vamos ao cemitério”, comenta Maria.
As aulas do Colégio Santo Antônio foram retomadas na segunda-feira seguinte, mas o assunto não poderia ser outro entre alunos e docentes. “Os professores não conseguiam dar aula. Todo mundo chorava”, diz Mallmann. Naquele ano, as festas da igreja foram canceladas. Se não para todos, para a maioria dos moradores de Estrela. O Natal foi melancólico e o Réveillon, silencioso. “Eu faço aniversário em dezembro. Mas não fizemos nada naquele ano. Não tinha clima”, lembra Maria.
Cena chocante
Carli Reinoldo Rücker, 69, aposentado e ex-vereador de Estrela, está entre os moradores que lembram bem a magnitude da tragédia. Na época com 17 anos, recorda a intensa mobilização do pai, Albano Rücker, que trabalhava como fotógrafo e saiu às pressas para registrar o acontecimento. Lamenta que a maioria das imagens se perdeu com o passar do tempo.
“Lembro dele correndo com a máquina fotográfica para o local do acidente”, conta. Rücker, junto com a mulher Tânia Maria, já eram namorados na década de 1960. No dia da tragédia, estavam em uma aula noturna no antigo Ginásio Industrial. Quando a informação chegou à instituição, todos os estudantes “largaram tudo” e foram em direção à ponte Stangler.
Recorda do momento em que o veículo foi guinchado para fora da água e os quatros corpos apareceram. “Foi uma repercussão muito grande, pelo fato das quatro terem falecido juntas, afogadas dentro do veículo. Aquilo foi muito chocante para a época”, relembra.
Tania chegou a conhecer a irmã Glorinha, quando estudou por cerca de um ano no CSA. “Foi uma perda muito grande para a comunidade. Elas eram pessoas muito ativas nas comunidades carentes”, descreve.
Em meio ao sentimento de tristeza e perplexidade, algumas pessoas comentavam ter visto o momento do acidente. A imagem do carro afundando lentamente e as vítimas desesperadas, tentando se salvar instantes antes do afogamento, assombrava o imaginário das testemunhas.
“Lembro que a gente não podia chegar perto porque o rio estava muito cheio. As pessoas estavam horrorizadas. Foi algo catastrófico que gerou uma comoção geral”, remonta Tania.
Dedicação e competência
A professora aposentada Maria Ofélia Moesch, 93, delegada regional de Educação na época, tinha relações próximas com as vítimas da tragédia mais comovente de Estrela. Como professora do Santo Antônio por quase 20 anos, trabalhou junto com as quatro freiras na instituição. No funeral, fez um pronunciamento que emocionou os milhares de enlutados.
Ela lembra que eram dias muito chuvosos e o arroio estava alto. “Foi uma ocorrência muito triste, nos deixou muito abatidos. Eram ótimas administradoras. Lembro bem da diretora irmã Miriam, sempre muito solícita com todos. Ela era jovem, bonita, doce e afável”, rememora.
Além da competência no gerenciamento da escola, Maria Ofélia destaca o perfil benevolente das irmãs franciscanas. “A irmã Miriam era muito caridosa. Ajudava as famílias dos alunos que não podiam pagar a mensalidade. Era prestativa e querida com todos. O sentimento é que ela não podia nos deixar”, descreve.
As vítimas
Não há confirmação sobre a cidade de origem das freiras. Segundo relatos dos entrevistados, as religiosas ensinavam principalmente artesanato, como pintura e bordado, além de serem as responsáveis pela gestão do CSA. Segundo João André Mallmann, do Instituto Histórico e Geográfico do Vale do Taquari, as datas de nascimento e os nomes de batismo são:
• Araci Oliveira: irmã Miriam, era a madre superiora e foi a terceira diretora do CSA. Nasceu em 9 de março de 1919.
• Hedwig Bersch: irmã M. Osita nasceu em 22 de novembro de 1929
• Hilda Buchmann: irmã Maria Lídia nasceu em 1° de maio de 1901
• Maria da Glória Muraro: irmã Glorinha era educadora e diretora auxiliar do CSA. Nasceu em 9 de novembro de 1932.
Alexandre Miorim: alexandre@jornalahora.inf.br | Gesiele Lordes: gesiele@jornalahora.inf.br