Para onde vai esta vila?

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Para onde vai esta vila?

Incrustada desde o início do século às margens a ERS-130, entre os bairros Moinhos e Montanha, em Lajeado, a Vila do Papeleiros ocupa parte da área verde que margeia a rodovia. São dez casebres e pelo menos 20 moradores fixos. EGR anuncia obra de via lateral e governo projeta ações para transferência das famílias, como o aluguel social e a construção de casas populares

Para onde vai esta vila?
Lajeado

Sigmar Dienstmann é o morador mais antigo da vila. As mãos parecem um mapa. O rosto enrugado aparenta mais do que os 57 anos. Vive com a mulher lá desde 2003. Viu o crescimento populacional e agora deve ser testemunha do desaparecimento da Vila dos Papeleiros.

Ao menos dez famílias moram em meio à área verde e aos improvisados centros de triagem de lixo na faixa de domínio do Estado. Sete de um lado, e três de outro. O governo municipal planeja a retirada dos catadores. Nessa quarta-feira, EGR, Polícia Rodoviária Estadual, Executivo de Lajeado e MP definiram os planos. Entre esses, a construção de uma alça à ERS.

O secretário de Trabalho, Habitação e Assistência Social (Sthas), Lorival Silveira, admite não haver uma data prevista à retirada das famílias. “Estamos verificando área no Santo Antônio para um novo loteamento popular. Não vamos abandonar essas famílias. Também verificamos a possibilidade de incluí-las no programa do aluguel social”, comenta.

Um novo encontro entre MP, EGR, PRE e governo municipal ocorre em 30 dias. Segundo as entidades, a abertura da rua é necessária para diminuir os riscos aos motoristas e pedestres, e também para facilitar o escoamento das empresas instaladas às margens da ERS-130. São pelo menos três grandes empresas nas proximidades.

Segundo o chefe do Setor de Projetos Especiais do Executivo, Isidoro Fornari, a remoção das famílias deve atingir os dois lados da rodovia estadual. O terreno ao lado da borracharia, por exemplo, pertence à prefeitura. Já a área vizinha aos papeleiros, do outro lado da ERS, é particular.

Nas margens da ERS-130, na entrada de Lajeado, a Vila dos Papeleiros cresce. São pelo menos dez famílias vivendo nos terrenos invadidos. Algumas estão no local faz mais de uma década. Autoridades estaduais, Ministério Público e governo municipal estudam formas de transferir os catadores.

Nas margens da ERS-130, na entrada de Lajeado, a Vila dos Papeleiros cresce. São pelo menos dez famílias vivendo nos terrenos invadidos. Algumas estão no local faz mais de uma década. Autoridades estaduais, Ministério Público e governo municipal estudam formas de transferir os catadores.

“Paguei a casa com um celular”

Dienstmann vive próximo ao posto de saúde do bairro Montanha. No lado direito da rodovia, no sentido Lajeado-Venâncio Aires. Comprou a estreita e primeira casa de madeira faz 15 anos. Até hoje não tem a escritura definitiva do terreno. O governo municipal não confirma se os moradores daquele lado da ERS também serão transferidos.

“Comprei a casa do primeiro senhor que veio morar aqui nesta área. Ele tinha essa e outra, que ficava do lado de lá da ‘faixa’. Lembro bem. Paguei uns R$ 600, que na época era muita grana. Dei parte em dinheiro, uns R$ 200, e também um celular, ‘daqueles tijolão.’ E ele só me deu um recibo de papel. Era tudo mato.”

Ele estudou até a 6ª série na Escola Estadual Otília Corrêa de Lima. Depois largou. “Era muito difícil conciliar com o trabalho.” Antes de escolher a vida próximo à rodovia, rodou pelo Vale. É natural de Arroio do Meio. Entre 1986 e 2001, morou em Sério. Jardineiro, passava as semanas trabalhando em Lajeado e voltava às sextas-feiras para ficar com a família.

O vaivém cansou-lhe. No início do novo milênio, veio morar no bairro Carneiros com a mulher e os sete filhos. Alugou uma pequena casa, e conseguiu bancar o valor do aluguel durante dois anos. Em 2003, o escasso dinheiro forçou a nova e – por ora – definitiva mudança às margens da ERS, no entroncamento da rodovia com a rua João Sebastiany.

Autoridades estaduais, do governo municipal e do MP, projetam a transferência das famílias

Autoridades estaduais, do governo municipal e do MP, projetam a transferência das famílias

Incêndio e filho morto

Dienstmann começa a jornada diária de catador de lixo reciclável logo cedo. Está construindo um pequeno galpão para triagem, nos fundos de uma borracharia. Ambas as construções estão em áreas dos governos estadual e municipal. “Em toda a minha vida, o máximo que ‘juntei’ em um mês foi R$ 900. Isso faz sete anos”, emociona-se.

E a vida tem sido ainda mais dura com ele nos últimos anos. Em outubro de 2015, uma das principais preocupações das autoridades – e do próprio catador – se tornou realidade. Por volta das 9h de uma segunda-feira, um pau de lenha caiu do rústico fogão e atingiu o único sofá da casa. O incêndio consumiu todo o imóvel de madeira. Por sorte, ninguém se feriu.

Cinco meses depois, em 15 de março de 2016, e com a casa reconstruída, nova tragédia. Um dos filhos, Cristian, foi morto por policiais dentro de uma farmácia, no centro de Lajeado. “Inventou de assaltar, na ‘loucura’ da droga. Estava com uma ‘faquinha’ de serra. Levou três tiros. Era um guri bom, mas a droga atrapalhou ele”, relembra.

Pelo menos dez famílias moram às margens da ERS-130. No local, improvisaram uma triagem de lixo

Pelo menos dez famílias moram às margens da ERS-130. No local, improvisaram uma triagem de lixo

“Também somos seres humanos”

O lado oposto à casa de Dienstmann é a área mais degradada. É a parte esquerda, no sentido Lajeado-Venâncio Aires. Lá casebres de madeira abrigam até sete pessoas de diferentes famílias e estados, como o catador Otávio Fernandes dos Santos, 54, que chegou faz três anos da cidade catarinense de Papanduva, distante 516 quilômetros de Lajeado.

Gabriela trabalha como catadora e também faz briques na beira do asfalto. “As pessoas param e pedem peças de bicicletas, móveis, eletrodomésticos.”

Gabriela trabalha como catadora e também faz briques na beira do asfalto. “As pessoas param e pedem peças de bicicletas, móveis, eletrodomésticos.”

“Uma mulher me convenceu a vir. Depois ela me deixou e encontrei abrigo na vila.” Sobre um retorno à cidade natal, despreza. “Que nada. Aqui me receberam de braços abertos. A população é muito solidária”, garante, no mesmo momento em que um motorista encosta o carro para lhe entregar uma máquina de lavar louça antiga.

Mas nem todos concordam com ele. Para Gabriela Francismara da Rosa, 23, o desprezo por parte da sociedade “é visível”. “Não escolhemos viver assim. Somos seres humanos. Além disso, o trabalho de ‘catar’ e reciclar lixo é bom para o ambiente”, diz a catadora, natural de Venâncio Aires.

Não há banheiro na casa dela. Tampouco água encanada ou energia elétrica legalizada. “Todo mundo toma banho na casa de uma vizinha, do outro lado da ‘faixa’. Podiam ao menos colocar uma faixa de segurança na ERS”, reclama. “Tem motorista que ‘joga’ o caminhão contra os catadores”, afirma uma moradora de 14 anos.

Próximo à casa de Gabriela, há uma “capunga”, usada por mais de uma dezena de catadores, e, além desses, moradores temporários. Quem também mora ao lado do banheiro improvisado é José Vilson Wendt. Tem 58 anos.

“Eu escolhi morar aqui para trabalhar. Antes disso, era servente de pedreiro. Aqui eu consigo tirar o suficiente para comer. Mas estou comendo só frutas, pois estou com um machucado grave na perna, precisando de ajuda.”

Meio ambiente

Faz poucas semanas, uma equipe da Secretaria de Meio Ambiente (Sema) vistoriou o local acompanhada do Grupo de Polícia Ambiental da Brigada Militar (GPA). O principal problema é o acúmulo de lixo em área verde e o serviço de triagem de material reciclável em local não legalizado.

“Notificamos o presidente da cooperativa. Nós pagamos um pavilhão para a associação levar o lixo”, diz o secretário, Luis Benoitt. A estrutura fica no bairro Moinhos. “O local é apertado, mas sempre recebem material reciclável de empresa e mercados. Se comercializar bem, é possível usar melhor aquele pavilhão”, acrescenta.

Tráfico de drogas

Além dos problemas ambientais, a segurança requer monitoramento constante. Houve ao menos uma morte por atropelamento – Ricardo Ajardo  morreu em março de 2017. Também já houve tentativas de homicídio. Entretanto, segundo o delegado Juliano Stobbe, a situação hoje “está mais calma”.

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“Já houve muita confusão. Tráfico de drogas era permanente, mas agora está um pouco mais calmo. Já fizemos algumas prisões no local.” Em junho de 2015, três traficantes foram presos dentro da vila. Em julho do mesmo ano, um homem foi preso vendendo maconha. “As moradias são totalmente desorganizadas”, adverte.


Rosmari Cazarotto

Conflitos sociais

A professora da área de humanidades do Centro de Ciências Humanas e Sociais Univates, Rosmari Cazarotto, diz que as situações de ocupação irregular ocorrem, em geral, devido ao acelerado processo de urbanização, acompanhado de mecanismos de segregação espacial. “Isso traz impactos sociais e ambientais.”

Segundo ela, ocorre um conflito sobre o uso do solo urbano. “Uma disputa por um novo uso, uma nova função, que é a construção de uma rua lateral, no espaço hoje ocupado e usado, de forma irregular, para a geração de trabalho e renda, bem como moradia de famílias.”

Rosmari alerta para a necessidade de diálogo entre as partes. “Ao poder público, cabe administrar esses conflitos e produzir consensos em torno desses interesses, tendo em vista que no Brasil a falta de moradia e a precarização do trabalho convivem lado a lado com quem está bem, ou muito bem, nesse sentido. É preciso negociação, diálogo,” finaliza.

Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br

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