Entre 7 e 19 segundos após ser inalada, a nicotina atinge o cérebro e libera substâncias responsáveis por estimular a sensação de prazer. Para ex-fumantes, vencer o vício é mais do que superar um mau hábito. É mudar comportamentos, rotinas e conhecer melhor a si mesmo.
Segunda chance
Foi pouco antes de entrar no bloco cirúrgico para remover um câncer no intestino que o aposentado Claiton dos Santos, 55, fumou o último cigarro. Lembra o dia: 14 de julho de 2014.
Depois de 36 anos de tabagismo, o ex-consultor de vendas comemora quatro anos longe do vício.“Assim que soube do câncer, fiz uma tomografia computadorizada e vi que no meu pulmão não tinha nada. Entendi isso como uma nova chance para superar o vício”, lembra.
Status social
Em 1978, o cigarro era ligado ao status social. Quanto maior o cigarro, melhor. Era charmoso.
Foi em uma festa, aos 15 anos, que Santos fumou o primeiro cigarro. “De cada dez homens, nove fumavam. Para as mulheres, da mesma forma. Quem não fumava, estava fora de contexto”, relembra.
O que começou como tentativa de se inserir no grupo se transformou em vício.
Aos 27 anos, fumava duas carteiras por dia. Foi quando a mulher Neura Inês Dalpian, 56, ficou grávida do filho Daniel Dalpian dos Santos.
“Durante a gestação, minha mulher sentia um enjoo absoluto com o cheiro do cigarro”, conta.
Nas viagens como consultor de vendas, entre Lajeado e a fronteira oeste do RS, fumava. Por 500 quilômetro, a companhia estava entre os dedos. Ao retornar, precisava despir-se por completo. Colocava as roupas em uma sacola e ia lavá-las na área de serviço da casa no bairro Hidráulica. Para completar o ritual, era obrigatório o banho para tirar o cheiro do corpo.
“Era terrível. Meu carro fedia a cigarro. Minha esposa beijava um cinzeiro, não um homem.”
Prece contra o cigarro
“Se tive vontade de fumar ao longo deste tempo? Com certeza.” afirma.
Mas para resistir à tentação do cigarro, Santos armou mecanismos de defesa. Sempre que a vontade de fumar vinha à tona, ele começava a rezar e pedia forças a Deus para que o libertasse da tentação.
“Hoje não tenho mais vontade. Penso no amanhã, se tenho oportunidade de viver mais um dia, por que eu vou fumar?”

Livre do vício. Santos exibe o exame do dia em que fumou pela última vez
Etapas para largar o vício
Parar de fumar. Essa é a meta do barbeiro Maurício Sbrussi, 31. Ele optou pela redução do cigarro por meio do fumo de enrolar. Diferente do cigarro industrial, a cada cigarro que ele vai fumar, precisa ir até o pacote do tabaco e buscar o papel de enrolar cigarros para montar o cigarro.
“É algo bem artesanal. Dá bem menos vontade de fumar. Muitas vezes fumava o cigarro industrial inteiro só porque estava pagando por aquilo. Com o tabaco de pacote, consigo controlar mais.”

Para reduzir o tabagismo, Sbrussi passou a fumar cigarros de enrolar.
Influência
Foi vendo o pai fumar que Maurício iniciou a jornada no tabagismo. Tinha 14 anos. O que começou com um ou dois cigarros surrupiados do maço do pai, logo virou hábito. Naquela época, muitas vezes comprava o cigarro. “Ninguém nunca me pediu carteira de identidade”, ressalta.
Quatro anos depois, aos 18, foi servir o Exército, em São Gabriel. Nesse período, já dominado pelo tabagismo, fumava 60 cigarros por dia.
Protesto
Além da vontade de obter melhora na qualidade de vida, Sbrussi deseja parar de fumar também como ato de protesto contra a indústria fumageira.
“A cultura do tabaco é um retrocesso. É continuar dando dinheiro para empresas que matam o consumidor e adoecem os agricultores.” Dos três maços de cigarro que fumava por dia, hoje, garante fumar apenas dois cigarros de enrolar por dia. “Tem sido tranquilo parar de fumar. Percebo que não preciso do cigarro.”
Correndo contra a ansiedade
Um cigarro antes do café. Outro durante. Para abrir o apetite antes de almoço, outro pito. Depois da refeição, mais um para auxiliar na digestão.

Esporte contra o cigarro. Buttenbender começou a correr para reduzir a vontade
Assim era a rotina do doutorando Bruno Buttenbender, 26, que começou a fumar aos 14 anos. Segundo ele, o cigarro combinava com todas as situações do cotidiano. No auge do tabagismo, chegava a fumar duas carteiras por dia.
“Não era algo em específico que me despertava a vontade de fumar. O não fumar me dava muita vontade de fumar”, diz.
Faz dois meses que não fuma. Enquanto elabora a tese de doutorado, em meio à ansiedade da produção intelectual, substituiu o cigarro por corridas diárias e por grupos de ajuda antitabagismo.
“Era uma dependência habitual. Não sentia mais prazer por fumar, apenas deixava a ansiedade tomar conta.”
Pitada de amor
Foi quando passou a morar com a namorada, Bruna Baron, 24, que Buttenbender teve de começar a conviver com alguém não fumante.
“Somente neste ano, devo ter tentado parar de fumar umas dez vezes. Parava um tempo, aí fumava um cigarro e depois comprava uma carteira”, relembra.
Segundo ele, foi a partir do momento em que encarou o cigarro como uma droga e admitiu a dependência que conseguiu parar. Tem consciência que continua dependente.
“Estou conseguindo diariamente não fumar. Parar de fumar é fácil, o difícil é não voltar”, comenta.
Dividindo um apartamento com Bruna no bairro São Cristóvão, em Lajeado, Buttenbender ressalta a importância de compartilhar as dificuldades do enfrentamento contra o cigarro com a família e a namorada.
“As pessoas que não fumam não fazem ideia da luta que é ficar sem o cigarro. Quando comecei a morar com minha namorada, sabia que seria uma fase de mudanças positivas na minha vida, entre elas, parar de fumar”, afirma.
Entrevista
“O cigarro não é uma alternativa”
Para a psicóloga Merihelem Pierry da Rosa, de Encantado, o tabagismo tem ligação com comportamento, fatores emocionais e por fim a própria dependência química.
Qual a maior dificuldade em parar de fumar?
São três os fatores que fazem com que a pessoa permaneça fumando: emocional, comportamental e dependência química. Digamos que alguém comece fumando em um momento de dificuldades emocionais e encontra no cigarro este alívio momentâneo. O cigarro libera a dopamina e essa sensação de prazer proporciona o alívio passageiro ao fumante. Como não resolve o problema, faz com que a pessoa acabe consumindo ainda mais cigarro, o que aumenta o nível de dependência química. Diria a que a maior dificuldade de parar de fumar é entender a rotina estabelecida pelo vício.
E como se constrói a rotina do vício?
A nicotina é a responsável pelo vício. Ao longo do tempo, o fumante vai estabelecendo os chamados “gatilhos” do vício. Por exemplo, se vai levar o lixo para fora de casa, acende um cigarro. Logo, quando pega o lixo na mão, o cérebro lembra do cigarro. Ou em outra situações, como esperar um ônibus ou até mesmo comprar pão. Quem quer parar de fumar precisa compreender a rotina do vício e como as ideias se organizam em torno do cigarro.
Quais os caminhos para romper este ciclo?
A rotina do fumante gera o comportamento dele. Ao parar de fumar, a pessoa precisa compreender essa rotina e mudar os hábitos. A vontade de fumar, a chamada fissura, dura cerca de 5 minutos em sua intensidade. Quando ela vier, é preciso resistir. Substituir e ocupar a cabeça com outras coisas – brincar com o cachorro, tomar banho, correr, caminhar. A fissura sempre passa. Uma boa dica para quem quer parar de fumar é escolher um dia bem atípico para tomar essa decisão, para fugir do habitual da rotina. As 72 horas iniciais são o período mais crítico para quem deixa de fumar.
Algumas pessoas voltam a fumar após um longo período distante do cigarro. Ao que se deve isso?
Essas pessoas voltam a fumar não pela química, mas sim pelo comportamento emocional. Quando se desestabilizam emocionalmente, em situações adversas, como bater o carro, terminar um relacionamento, por exemplo, buscam o conforto no cigarro. O ex-fumante tem que ter ciência que cigarro é vício. Se deixar de lado, necessita monitoramento. Precisa entender que o cigarro não é uma alternativa e pensar mais construtivamente.

Quando Stein sentia vontade de voltar a fumar, tocava guitarra para passar o desejo
No lugar do cigarro, música
Foi em meio a uma forte gripe, em agosto de 2015, que o economista e cientista político Guilherme Stein, 29, teve de ficar a primeira vez sem fumar durante três dias.
“Depois de me curar da gripe, decidi continuar sem fumar.” O que começou aos 14 anos como uma brincadeira em uma festa tornou-se um vício aos 17, quando passou a fumar uma carteira por dia.“Sempre gostei de música e todos meus ídolos fumavam.”
Segundo ele, a consciência de um fumante sabe que uma hora ou outra, por bem ou por mal, terá de parar.
Embora não tenha conseguido largar de vez o cigarro naquela ocasião, a ideia de parar manteve-se forte.
“Reduzi em 70% a quantidade de cigarro que eu fumava. Também, em seguida, aderi aos cigarros de enrolar que diminuíram ainda mais o consumo.”
Mestrado
Foram necessárias doses de coragem e ousadia para enfrentar o vício em meio à conclusão de mestrado em Ciências Sociais.
No dia 2 de fevereiro de 2016, após concluir a dissertação, pôs o último cigarro na boca. Está sem fumar faz dois anos e meio. “Nem me lembro que um dia fui fumante.”
Associações
Muitos dos amigos durante a faculdade e o mestrado, Guilherme fez nos fumódromos da universidade.
“De fato, embora as restrições impostas pelas leis, fumar ajuda bastante a socializar. Conheci muita gente enquanto fumava”, recorda.
Para resistir à tentação do cigarro, Stein somava as conquistas obtidas sem fumar com o lado negativo do vício.
“Fumar tem coisas positivas, como amenizar a ansiedade e, como já falei, socializações. Porém o fumante deve focar no lado negativo de fumar, que é muito maior, para enfrentar o vício”, sugere.

Unidade da Souza Cruz em Lajeado ficava na av. Senador Alberto Pasqualini
Indústria do fumo
De acordo com a Afubra, no Brasil, são mais de 159 mil famílias produtoras de tabaco. No RS, 74,3 mil famílias vivem da cultura do fumo.
O setor fumageiro presta importante contribuição social envolvendo mais de 2,1 milhões de pessoas. No Brasil, na safra 2016/17, foram produzidas 719.392 toneladas. No RS, foram 345 mil toneladas.
Mercado resiste
A tributação de mais de 80% sobre o cigarro, somada à série de restrições aos fumantes, como proibição de fumar em locais fechados, por exemplo, reduziu em 36% o número de tabagistas nos últimos 11 anos.
Para garantir a sobrevivênvia da produção de tabaco, a indústria tem investido nos produtos de tabaco aquecidos (vaporizados).
Apresentados como meios mais saudáveis, os produtos têm como principal diferencial o fato de não envolver combustão no consumo. Ao invés de queimar, como no caso do cigarro, o tabaco é apenas aquecido e vaporizado.
De acordo com pesquisas realizadas pelo setor fumageiro, a combustão seria a principal responsável pelos componentes tóxicos liberados pelo cigarro. Ao pôr fim a esse processo, o prejuízo à saúde do fumante se tornaria menor, apesar dos danos diretamente associados à ingestão de nicotina.
Há 76 anos
A Companhia Brasileira de Fumo em Folha, depois Companhia de Cigarros Souza Cruz, inaugurou a fábrica em Lajeado na década de 1940.
Como vários dos diretores que vinham para Lajeado só falavam inglês, foram apelidados de “americanos”, o que originou o nome do bairro.
A fábrica tinha 60 funcionários e 140 safristas (de dezembro a junho), para receber 35 mil fardos de fumo de estufa. A companhia ocupava uma área no loteamento das terras de João Zart.
A maioria dos funcionários morava nas imediações da fábrica, na avenida Alberto Pasqualini. Para acordar os trabalhadores, um apito alto os convocava para o serviço.
“Foi meu primeiro emprego, com 15 anos, no setor administrativo. Na época, trabalhar na Souza Cruz era o melhor serviço na região. Além do bom salário, a empresa era muito moderna”, lembra o aposentado Carlos Martini, 66, que trabalhou por dois anos na companhia.
Entrevista
“É sempre hora de parar de fumar”
Médica pneumologista, Iloni Riedner Barghouti alerta que o tabagismo, por si só, já é uma doença que traz risco de desenvolvimento de pelo menos 50 outras enfermidades.
Quando uma pessoa para de fumar, como o pulmão reage?
A primeira impressão que a pessoa pode ter é de que ela vai piorar nos primeiros dias – ficar sem ar, pigarro e tosse. Isso ocorre porque o pulmão está trabalhando, limpando o organismo do cigarro. O ganho de ar é gradativo. Essa sensação pode durar alguns dias. Logo, o indivíduo já conquista capacidade respiratória, diminuição de irritabilidade na garganta, redução de secreção e melhora no sistema circulatório.
Muitas pessoas que não fumam acabam tendo câncer no pulmão. Por outro lado, muitos fumantes convivem com o cigarro ao longo da vida sem apresentar essa doença. Qual o risco para quem fuma?
Em torno de 90% dos cânceres de pulmão são relacionados ao tabagismo. O risco para quem fuma é muito maior. No meu consultório, mais de 50% dos pacientes são fumantes. Mas normalmente não percebem que os problemas de saúde são decorrentes do cigarro. O que todo fumante, mais cedo ou mais tarde vai ter, é a chamada doença obstrutiva crônica – que vai dando perda na atividade pulmonar, primeiro em esportes maiores, depois em menores. Até o ponto em que a pessoa chega a ter falta de ar para se vestir ou tomar banho.
Quais os primeiros sintomas de que o cigarro está deixando alguém doente?
O tabagismo por si só já é considerado uma doença pela Organização Mundial de Saúde. Dele decorre pelo menos outras 50 doenças. O primeiro sintoma de que o cigarro está prejudicando a saúde é a tosse matinal. Só que as pessoas pensam “Ah, isso é do cigarro. Normal.” Mas não é normal, mostra que o cigarro está causando irritação na via aérea. Logo a pessoa se sente mais cansada e passa a expectorar mais. Mas, em geral, as pessoas atribuem isso à rotina ou à idade. Mas é o cigarro.
Quanto tempo o pulmão demora para se regenerar dos danos causados pelo cigarro?
Em geral, para se igualar ao pulmão de quem nunca fumou, demora dez anos. Mas isso depende da intensidade do fumante: quantos anos fumou e quantos cigarros por dia. Ao parar de fumar, é importante que a pessoa faça exercícios físicos e beba bastante água.
Como pneumologista, qual a orientação que você dá aos fumantes?
É sempre hora de parar de fumar. Conheço casos de fumantes com 80 anos que dizem que já não têm mais por que parar. Mas há sempre tempo para isso. A sobrevida é muito maior para quem deixa o cigarro de fora. Sugiro essa orientação não só a pneumologistas, mas médicos de outras áreas. Se o paciente for fumante, é importante alertá-lo sobre os riscos do tabagismo e buscar melhorar a qualidade de vida dele.
Cristiano Duarte: cristiano@jornalahora.inf.br