Andreia viu Vinícius pela última vez na manhã de quarta-feira, dia 6 de setembro do ano passado. Eles moravam na rua Bento Rosa, no bairro Hidráulica. O estudante de 21 anos trabalhava na prefeitura. Ela e o filho saíram juntos de casa. Antes da despedida, uma última cutucada na barriga e uma frase pessoal. “Vai, gordinha”, ele disse antes de virar a esquina, sorrindo, e sumir da vista da mãe.
Era véspera de feriado. Vinícius não saíra nos dois últimos fins de semana. Naquela tarde, Andreia se atrasou para chegar em casa. Quando chegou, por volta das 21h, o filho havia saído para encontrar os amigos. “O padrasto dele apenas me avisou: O ‘Vini’ saiu, todo bonito, todo arrumado, e foi para a festa hoje”, lembra ela, orgulhosa.
O destino dele naquela noite era uma boate na Av. Alberto Pasqualini, no bairro Universitário. Vestia camiseta clara, calça e uma jaqueta preta. Foi acompanhado de dois amigos: Talis e Daniel. A mãe enviou um texto, via WhatsApp, desejando boa festa. Ele não chegou a ler a última mensagem enviada por ela. “Nunca apareceu como ‘lida’ aqui no meu celular”, emociona-se.
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Andreia foi dormir tranquilamente naquela noite. Vinícius gostava de festas e não era incomum os retornos dele em horários mais avançados da madrugada. Mas ele nunca tocava a campainha. E, naquele início de feriado de 7 de setembro, o barulho do interfone acordou o casal. “Na hora eu sabia que algo havia acontecido com meu filho.” De fato, a intuição de mãe estava certa.
Quem tocou o interfone foram os soldados da Brigada Militar (BM). Eram quase 6h, praticamente 45 minutos após o atropelamento. O companheiro de Andreia foi atendê-los e voltou para repassar a dura – mas ainda incompleta – notícia. “Eles apenas comunicaram que havia ocorrido um acidente com o Vini e que nós deveríamos ir ao hospital”

Andreia não se conforma com o arquivamento do caso. “O que seria uma conduta perniciosa à sociedade? Um rapaz vindo de uma festa com amigos e cruzando a via a um passo da calçada ser atropelado e não socorrido? Ou um condutor sem habilitação dirigindo após uma festa em que confessou ter bebido e foge para casa dormir?”
A morte
Andreia e o padrasto de Vinícius foram juntos até o HBB. Lá, encontraram um dos amigos que estava com o estudante no momento do atropelamento. Chocado, ele estava próximo à porta de acesso do hospital. “Eu perguntei o que havia acontecido. Mas ele, acho eu, não teve coragem ou ficou com medo para me dar a pior das notícias. Me disse, apenas, que o Vini havia machucado a mão.”
O casal esperava por algo semelhante. “Imaginava que seria algo assim, que encontraria ele, no máximo, machucado.” Raiava o dia quando um médico veio ao encontro da mãe. A comunicação foi curta. “Seca”, lembra ela. “Ele só me disse: o Vinícius veio a óbito. Depois disto, não lembro de mais nada.”
A mãe não conseguiu entrar na sala de emergência para identificar o cadáver do filho único. Quem verificou foi o marido. “Ele estava muito machucado”, conta. O estudante morreu em função de traumas na face e no crânio.
“O arquivamento foi a segunda morte”
Os dias seguintes foram de dor e indignação. Andreia ficou cerca de 20 dias sem ir ao trabalho. Ao retornar, ficou mais 30 atuando só em serviços burocráticos na imobiliária onde atua, sem contato com o público. Ao mesmo tempo, ela acompanhava o desenrolar das investigações acerca da morte do filho, e passou a tomar medicamentos para amenizar a dor e a ansiedade.
No dia 18 de setembro de 2017, o Delegado da Polícia Civil (PC), Juliano Stobbe, indiciou o motorista do veículo – que não possuía CNH e admitiu ter ingerido bebida alcoólica com amigos – por homicídio com dolo eventual. O inquérito foi encaminhado para o promotor de justiça, Ederson Maia Vieira. Em março de 2018, o representante do Ministério Público arquivou o processo.
O promotor convocou uma coletiva de imprensa para argumentar sobre o arquivamento. Na decisão, citou uma análise do IGP em que o veículo estaria abaixo da velocidade limite. Também desconsiderou como causador do óbito os fatos do condutor não possuir CNH, ter ingerido bebida alcoólica e não ter prestado socorro à vítima. Para ele, a culpa teria sido só de Vinícius, pois ele estava caminhando sobre a pista de rolamento.
Andreia ficou sabendo do arquivamento pelo Facebook. “Eu vi uma postagem de uma amiga compartilhando a notícia. Não conseguia acreditar. O arquivamento foi a segunda morte do meu filho”, diz. “Não buscávamos uma condenação por homicídio ‘doloso’. Mas, no mínimo, ‘culposo’. Eu ensinei a vida toda para o meu filho que era proibido dirigir embriagado e sem habilitação. Será que eu deveria ter ensinado o contrario”, ironiza.
“É leviano afirmar que meu filho estava embriagado”
Na mesma coletiva, e também em entrevista concedida à rádio local, Vieira diz que a vítima e os dois amigos consumiram “grandes” quantidades de bebida alcoólica no dia do acidente. Para chegar a esta conclusão, o promotor analisou imagens realizadas por câmera de segurança da casa noturna onde eles estavam antes do acidente.
As imagens gravadas na casa noturna mostram que os três amigos ingeriram bebida alcoólica no local, e saíram às 4h26min. Entretanto, não é possível perceber sinais de embriagues na vítima, afirma a mãe. Já para o promotor, o fato dele esfregar a mão no rosto seria um sinal de que estaria com alguma alteração motora. Esta seria, para o MP, mais uma prova contra Vinícius.
Andreia rechaça todas as suposições apresentadas pelo MP, e corroboradas dias depois pelo titular da 1ª Vara Criminal de Lajeado, o juiz Rodrigo de Azevedo Bortoli, que confirmou o arquivamento. “Ver o nome dele, que não esta mais aqui para se defender, figurar na lista dos culpados é no mínimo desumano por parte das autoridades”, resume a mãe. “Ele era uma criança incrível. Educado. Me ajudava a servir alimentos para pessoas carentes. Era adorado por todos.”
Ainda de acordo com ela, o representante do MP teria atuado de forma incompatível com a posição. “O atropelador nem precisaria de advogado, pois o promotor parecia querer incriminar o Vini”, afirma. “Já na primeira entrevista para uma radio, ele se mostrou com raiva nos comentários pelas redes sociais e pelas criticas de colegas de trabalho. A partir dai, já me pareceu que o processo talvez não seria conduzido com a isenção necessária.”
A vida sem Vinícius
Hoje, ela e o companheiro mudaram de casa. “Eu não aguentava ver o quarto dele.” Passou a frequentar centros espíritas, tomar medicamentos e cuidar dos gatos do filho.
Já recebeu algumas cartas psicografadas dele, e também o reencontrou em sonhos, conta. “Em um desses, antes do arquivamento, ele me falou que a justiça dos homens é falha”, finaliza a mãe, que nunca se encontrou com o promotor ou com o condutor do veículo, e pretende mudar de cidade em breve.
Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br