Amigos e familiares buscam entender os motivos para Luciane Kunz, 36, ter matado as duas filhas e depois se suicidado. O fato abalou a região e deixou a cidade atônita. No sábado, ela matou as duas filhas, uma de 3 anos, outra de 7 e depois se suicidou.
Os conflitos eram de conhecimento das autoridades. Conforme o promotor de Justiça Especializada, Sérgio da Fonseca Diefenbach, fazia mais de um ano que o Ministério Público (MP) e as demais repartições da rede pública de atendimento acompanhavam a família. “Sabíamos da disputa entre a mãe e os pais.” Segundo ele, havia uma desorganização familiar que tornava a relação difícil.
A investigação preliminar no dia do fato indicava a tendência de que a briga pela guarda das crianças fosse o estopim para o surto. O primeiro filho morava com o pai. A filha do meio, de 7 anos, diz o promotor, também estava em meio a uma disputa entre Luciane e o ex-companheiro. “O MP acompanhava a evolução dessa iniciativa dos pais”, realça Diefenbach.
Por meio de nota, a Administração Municipal de Santa Clara do Sul informou que o Conselho Tutelar atendia a família e realizou os encaminhamentos necessários à Rede de Serviço. Representantes do serviço também relataram ao Ministério Público a situação familiar, cumprindo o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente. Devido ao sigilo profissional, o Conselho Tutelar apenas se manifestará sobre o assunto à Justiça.
O Centro de Referência de Assistência Social (Cras) informou que Luciane era acompanhada por uma rede multiprofissional. As filhas, por sua vez, estavam em turno integral na rede municipal. Luciane não apresentava comportamento suicida. Os profissionais inclusive ajustavam o horário de trabalho para possibilitar a frequência dela e das filhas aos serviços ofertados pelo município.
Lamento da comunidade
A manhã de sábado mudou a rotina em Santa Clara do Sul. A cidade tem cerca de sete mil habitantes e muitos conheciam Luciane. Uma aposentada sabia do quadro de depressão dela. “Eu também sofro dessa doença. Sei o quanto é difícil. Não consigo imaginar a dor que ela estava sentindo”, conta a mulher em frente ao apartamento onde aconteceu a tragédia.
Cerca de 50 pessoas foram para o local instantes depois da polícia chegar ao prédio. Atônita, uma vizinha tentava ajudar a irmã de Luciane. “As meninas vieram brincar no meu pátio. Estavam sempre aqui. Eram amigas da minha filha. Não há palavras para dizer o que estou sentindo.”
Um agricultor que passava de bicicleta pelo local parou para saber o que tinha acontecido. Ao ouvir o relato dos demais, ficou surpreso. “Ela era uma mãe amorosa. Uma pessoa que nos cumprimentava sorrindo. Não dá para acreditar.”
Das 10h até as 13h, horário em que os corpos foram levados à necropsia em Porto Alegre, os familiares de Luciane e das crianças começaram a chegar. Valdemar Rosso, avô da menina de 7 anos, mora em Arroio do Meio e ficou sabendo por volta das 11h30min.
Ele acompanhava os trabalhos da PC no local e havia visto a neta pela última vez fazia cerca de 15 dias. O pai da menina mora em Lajeado e estava separado da mulher fazia cerca de cinco anos. A família não sabia que ela sofria de depressão. “Nunca imaginei que algo assim poderia acontecer. Ela sempre foi muito educada com a gente. Nos tratava bem e era carinhosa com as meninas”, diz o avô.
Depois da Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) apurar as primeiras informações sobre o caso, a investigação passou a ser de responsabilidade da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), que já tinha atendido Luciane em denúncias de violência doméstica contra o último companheiro.
Ontem, a delegada Márcia Bernini ouviu duas testemunhas: um policial militar que atendeu a ocorrência e um familiar da mulher. Ambos não apontaram causas que pudessem ter levado Luciane a praticar tais atos. Segundo a delegada, em princípio, os casos de violência doméstica também não teriam relação com as mortes.

Antes de estrangular as filhas, Luciane enviou uma foto com uma mensagem para o ex-companheiro
Brigas na frente das crianças
Conforme o promotor, a relação de Luciane com o pai da menina mais nova, de 3 anos, era a mais conflituosa. Havia ocorrências de agressões entre os pais. Essa instabilidade, continua, gerava dúvidas sobre a guarda da criança.
As informações em posse do MP indicavam relatos de discussões conjugais na presença das crianças. Havia também situações em que ela deixava o filho mais velho de responsável pelo cuidado das irmãs. Outro detalhe, diz o promotor, ela tinha histórico de negligência com o acompanhamento psicológico. “Nada que abrisse suspeita de que ela atentaria contra a vida das crianças”, frisa Diefenbach.
Ao que parece, diz o promotor, não haviam indicativos de que a depressão chegasse ao quadro extremo. “Temos centenas de casos similares. Era uma situação imprevisível. Será uma dor que levaremos para sempre.”
Caso houvesse alguma suspeita, diz Diefenbach, o MP poderia ter ingressado com uma medida protetiva e levar as crianças para os familiares ou para uma instituição de amparo. “Precisaríamos de elementos mais concretos. Brigas domésticas são normais. Só com mais informações para ingressar com uma ação como essa.”

Polícia chegou ao apartamento no centro da cidade por volta das 8h30min
Decisão judicial
Juiz da Vara de Família, Luís Antônio de Abreu Johnson concedeu liminar em setembro de 2016, passando a guarda do filho mais velho de Luciane para o pai do menino. Na época com 11 anos, por vontade, ele teria ido morar com o pai, que contatou com a Justiça para regularizar a situação.
Segundo o magistrado, relatórios do Conselho Tutelar, da rede de atendimento municipal, além de laudos psicológicos contribuíram para a decisão, assim como a vontade do menino. Em juízo, ele disse que preferia ficar com o pai. Na época, não tinha poder de decisão, mas tinha o direito de ser ouvido.
Em dezembro do mesmo ano, em acordo, Luciane e o ex-companheiro decidiram pela guarda compartilhada. Ela ficaria com o filho em fins de semana intercalados, e de terça a quinta-feira, todas as semanas. O que se manteve até então. “Isso estava resolvido. Não houve mais nenhum problema em relação a isso”, afirma Johnson.
Em relação às meninas, não havia pedido de guarda por parte dos pais, nem pelo Ministério Público. “Para isso é preciso haver negligência, maus-tratos, e nenhuma dessas hipóteses foi apontada. O poder público não pediu reversão da guarda delas.”
A tragédia
A polícia chegou ao apartamento por volta das 8h30min. Ao entrar, encontraram a mulher e as duas crianças mortas. Vizinhos ouviram uma das meninas chorando muito por volta das 6h. Próximo aos corpos, havia um bilhete de Luciane com os motivos para o ato.
Entrevista
“A sociedade precisa de mais ferramentas para entender a depressão”
Médico psiquiatra, Fábio Vitória aponta causas que podem levar uma pessoa a atentar contra a própria vida e a de outros.
A Hora – Informações dão conta de que Luciane apresentava um comportamento depressivo. Em qual estágio de depressão uma pessoa seria capaz de tal ato?
Fábio Vitória – A depressão pode acontecer de várias formas. Cada pessoa apresenta sintomas diferentes. A isso estão ligados fatores externos, questões genéticas, traumas na infância e adolescência, tanto psicológicos quanto físicos. Vários elementos estão presentes para justificar a doença. Mas a depressão mais grave, sem dúvida, pode causar sintomas psicóticos e a ideação de suicídio.
Como se chega nesse quadro?
Vitória – Às vezes a pessoa pode ter um primeiro episódio depressivo, não tratar, ou não receber tratamento adequado, e a doença evolui e torna-se grave. Muitas vezes isso ocorre porque o diagnóstico não foi bem-feito, até porque é muito difícil. Não é raro acontecerem erros na psiquiatria, porque a depressão é algo muito subjetivo. Além disso, cada organismo responde de uma forma. Têm pessoas que respondem muito bem a determinadas medicações, e outras não. Em outros casos, a pessoa abandona o tratamento; não aceita o diagnóstico por preconceito e conforme o tempo passa tudo piora. Mas também há possibilidade de num primeiro episódio a pessoa já ficar deprimida a ponto de atentar contra si, e outros. Isso é muito relativo.
O que é um surto psicótico?
Vitória – Isso ocorre quando a pessoa perde parcial ou totalmente a conexão com a realidade. Há dois sintomas principais: alucinações, que podem ser auditivas – escutar vozes que orientam a fazer coisas; ou vozes acusatórias – ou visuais – ver vultos, pessoas que não existem – e também há os pensamentos delirantes, quando a pessoa pensa que está sendo filmada, perseguida, ou acusada, mas na verdade não está.
Com a rede de atendimento existente hoje seria possível, na sua avaliação, evitar uma tragédia como essa?
Vitória – A realidade é heterogênea. O Vale do Taquari, comparado a outras regiões, tem um suporte de rede de atendimento em saúde mental considerado bom. Há vários serviços à disposição. Mesmo em municípios onde não tem Caps, têm equipe, ou local de referência. Há uma quantia razoável de leitos. Claro que existem necessidades, mas no geral está bom.
Quais seriam os procedimentos ideias para evitar casos como esse?
Vitória – O primeiro passo é saber como identificar os casos. É necessário encaminhar para o serviço de saúde que possa oferecer melhor atendimento, ou fazer um acompanhamento frequente.
Além da rede de atendimento, qual o papel da família e dos amigos na prevenção?
Vitória – A sociedade precisa de mais ferramentas para entender a depressão. Quais são sintomas, onde buscar ajuda, como auxiliar. A família tem o papel de identificar as situações, de ajudar. Estimular que a pessoa se trate. Se ver que a pessoa não está aceitando, averiguar se está tomando medicação, se está fazendo terapia. Precisa dar apoio. Jamais um familiar deve desencorajar alguém a se tratar. Dizer que depressão é besteira, ou que a pessoa não precisa daquilo. Pelo contrário, precisa estimular.
Casos semelhantes
Fevereiro de 2013 – Bom Retiro do Sul
Em fevereiro de 2013, Paulo Santos, 41,matou dois filhos, e depois se suicidou. Ele tinha guarda compartilhada das crianças com a ex-mulher. Naquele fim de semana, Bianca da Silva Santos, 3, e Leandro da Silva Santos, 6, foram vistos pela última vez na noite de sábado. Conforme a investigação, foram mortos na manhã de domingo. Os peritos encontraram sinais de traumatismo craniano nos dois.
Em uma carta, Santos alegava que era impedido pela ex-mulher de ver seus filhos com a frequência que desejava e alertava que pretendia matá-los, e depois se suicidar. Na época, as crianças moravam com a mãe em Fazenda Vilanova. No domingo à noite, após a demora na devolução dos filhos, a mulher procurou o Conselho Tutelar da cidade e acionou a Brigada Militar (BM), para que pudesse buscar o casal. Ao entrarem na residência, as autoridades encontraram os três corpos. Familiares dele suspeitavam que o alcoolismo e o processo de separação teriam motivado o crime.
Junho de 2017 – Lajeado
Em junho do ano passado, no bairro Conventos, em Lajeado, Micaela Padilha Brauwers, 3, foi morta pelo pai Rodrigo Marciano Brauwers, 29, que depois se suicidou. A menina passava o fim de semana na casa do pai, que tinha guarda compartilhada com a ex-mulher, Celi Mariano Padilha. Segundo investigação, a menina teria sido sufocada enquanto dormia. A tragédia foi descoberta na manhã seguinte, pelos pais de Brauwers. Eles residiam no mesmo terreno. Em duas cartas, ele teria afirmado que o amor por Micaela era tão grande, que preferiu levar ela junto consigo. O alcoolismo associado à depressão teriam sido fatores preponderantes.
Carolina Chaves da Silva: carolina@jornalahora.inf.br | Filipe Faleiro: filipe@jornalahora.inf.br