Imagine você caminhando na rua e de repente ouve um assovio. Olha para o lado e vê um grupo de homens lhe encarando e fazendo comentários um tanto quanto constrangedores. “Gostosa”, “Noooooossa”, “Que delícia”, “Ôh lá em casa, hein”. Você não fez nada. Apenas passou por ali.
Algumas quadras à frente, um carro passa por você. Reduz a velocidade e o motorista quase quebra o pescoço para conseguir ver por mais tempo o seu traseiro. “Gostooosa”.
A cultura falocêntrica por trás dessas cenas corriqueiras ainda é muito presente no país e, de uma forma ou de outra, reflete nas estatísticas de violência contra a mulher. A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil.
De acordo com índices divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em outubro de 2017, ocorreram uma média de 135 estupros a mulheres por dia no Brasil, somando quase 50,5 mil casos no ano. O país também registra dez estupros coletivos diários, uma média de um a cada duas horas e meia.
O artigo 213 do Código Penal, reformulado em 2009, configura como estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Mesmo assim, alguns operadores do direto enquadram atos não tão extremos em condutas penais como, por exemplo, importunação ofensiva ao pudor.
As “cantadas” na rua também são infrações penais. A partir do momento em que o ato passa a ter interação física, como um beijo forçado, já é estupro. “Com essa definição, quantas já sofremos um, e quantos já cometeram?”, indaga Joanna Burigo, mestre em Gênero, Mídia e Cultura e fundadora do blog feminista Casa da Mãe Joanna.
A cultura do estupro
De acordo com texto de opinião de Joanna na Carta Capital, a cultura do estupro é o comportamento que normaliza a violência sexual. Segundo ela, as pessoas não são ensinadas a não estuprar, mas sim ensinadas a não serem estupradas. “A cultura do estupro é visível nas imagens publicitárias que objetificam o corpo da mulher. Nos livros, filmes e novelas que romantizam o perseguidor. Quando achamos normal recomendar às meninas e mulheres que não saiam de casa à noite, ou sozinhas, ou que usem roupas recatadas”, enfatiza.
Joanna afirma que duvidar da vítima quando ela relata uma violência sexual também faz parte da cultura do estupro. “É mais fácil acreditarmos em narrativas de uma suposta malícia inerente das mulheres do que lidarmos com o fato de que homens cometem um estupro”, afirma.
Em tempo
Você pode estar se perguntando o motivo da chamada de capa, certo? Aquela velha crença de que “o proibido é mais gostoso” está sendo aplicada aqui. Um estudo da Universidade de Columbia, no Reino Unido, provou por meio de testes que a proibição causa curiosidade e, basicamente, que o humano é muito suscetível a saciá-la. Essa reação automática de, por exemplo, ler o que é proibido causa sensação de controle e liberdade. E, bom, a intenção era exatamente essa: que eles lessem. Será que deu certo?
Assédio ou cantada?
“Assédio é quando os homens usam frases ou têm atitudes que deixem a mulher constrangida de alguma forma, ou até mesmo ofendida, que pode ser gerado por uma cantada também como “Psiu”, “e aí gostosa”, “vem aqui”…”
Iti Oliveira, Engenheira de Materiais
“Referindo-se à prática de a mulher usar o corpo como moeda de troca para ascensão salarial, a leitora fala: “Acho que a pior de todas como assédio é: você sabe que tem “como” melhorar de cargo? Né?”
Fernanda Porto, bancária
“Assédio é quando chega de forma abusiva, causando constrangimento “gostosa”, “te comia todinha”, “vem com o papai” e tal. Cantada é quando você dá abertura, demonstra interesse na pessoa. É uma questão de a pessoa perceber limites, o uso da palavras, do gesto, do olhar. Olhar direto pra bunda é assédio, olhar nos olhos é cantada, por exemplo.”
Letícia Abreu Gomes, empresária
“O limite da cantada é até a resposta da mulher. Se depois do não, houver insistência, passa a ser assédio. Eu entendo que a cantada pode ser algo bem intencionado, enquanto o assédio não, de forma alguma. Um homem que quer conquistar uma mulher jamais berra, entre muitas pessoas, que ela é gostosona, isso é pura maldade e safadeza mesmo. Entre as frases de assédio, que são milhares, as que mais me deixam enfurecida são aquelas que se referem ao meu corpo, como “hum, com esse shortinho tá querendo”, “você quer me deixar louco” e “o que será que tem por debaixo dessa saia?”
Larissa Zwirtes, empresária
“Assédio é quando a pessoa se sente intimidada e desconfortável com a situação, geralmente vem de forma desrespeitosa e com relação à sexualidade. E cantada é como um elogio, mas dentro do limite e que faz a pessoa se sentir melhor, com intenções positivas. Mas acho que a cantada pode se tornar assédio a partir do momento em que a pessoa não dá mais abertura e a outra continua insistindo.”
Tainara Marini, atendente
“Assédio é constranger a mulher, lhe faltar com respeito, tanto verbalmente quanto fisicamente. Cantada é quando a mulher dá abertura para tal, quando ambos têm interesse, etc.”
Stefhani Olbermann, estudante
“Assédio é tudo que é feito sem permissão, como passar a mão em alguma parte do corpo, insistir em ficar mesmo depois da mulher ter dito não. Às vezes, até um olhar pode ser assédio, porque tem aquele olhar de paquera mesmo e tem um tipo de olhar que te faz sentir como se fosse um pedaço de carne, e esse é usado pra constranger. Tudo isso sempre me incomodou muito, principalmente a insistência em ficar nas festas mesmo depois de dizer não. Mas o pior é que, na maioria das vezes, os homens sabem que estão te deixando desconfortável, e continuam fazendo porque é uma forma de exercer poder e se sentir superior. Mesmo que às vezes eles só sejam inseguros demais pra aceitar um não, acredito que muito é proposital.”
Manuela Lisot, estudante
Mapa do acolhimento
Uma ideia simples que pode salvar vidas, o Mapa do Acolhimento compila a opinião de quase três mil voluntárias que depois de serem atendidas avaliam os serviços públicos de atendimento a vítimas de violência sexual no Brasil. Criada pela ONG Nossas Cidades e pelo movimento #AgoraÉQueSãoElas, a rede já tem mais de 450 terapeutas que atendem essas mulheres de forma voluntária e 30 instituições disponíveis para consulta. O serviço psicológico é oferecido de graça e o site funciona tanto para quem pode acolher (terapeutas e demais profissionais) quanto para quem precisa ser acolhida (mulheres vítimas de violência sexual).