“…constava que faziam parte de um arrastão, de uma das quadrilhas de pivetes que agiam na Zona Sul da cidade…”
Trecho de Romance Negro e outras histórias, livro de Rubem Fonseca
Como é tradição, o carnaval carioca deste ano arrastou milhares de turistas para as ruas e avenidas da capital fluminense. No embalo do samba, dezenas de arrastões deram vida à ficção de Rubem Fonseca em O Romance Negro e outras histórias: “… ninguém sabia por onde eles andavam; constava que faziam parte de um arrastão, de uma das quadrilhas de pivetes que agiam na Zona Sul da cidade, assaltando […] pessoas bem-vestidas, turistas…” Pavor captado por celulares e câmeras de segurança. A alegoria completou-se com avenidas paralisadas por tiroteios e o fulgor sinistro das balas traçantes no céu da cidade. A violência não segurou a evolução de enredos críticos e as arquibancadas cantaram letras sob medida contra os malfeitos políticos “patropi” – vox populi, vox dei. Destaques salientaram a realidade turbinada por autoridades criminosas – corruptos, assaltantes e ratos. Tanta ironia e rigor ressuscitaram a censura e o singular vampiro da Paraíso do Tuiuti, mesmo aprovado pelo público, perdeu a faixa presidencial no desfile das campeãs.
A CONTA. O pastor-prefeito Marcelo Crivella, avesso à folia pagã, exilou-se na Europa para não se misturar com o maior evento turístico brasileiro. Enquanto o município pegava fogo, o alcaide inventava um motivo para a turnê hibernal. Disse ter ido “conhecer tecnologias para a segurança pública”, algo ignorado na agenda oficial. Já o governador Luiz Fernando Pezão, refugiado no Interior, só se manifestou para confessar o erro de planejamento. A conta com a saga infame do ex-governador Sérgio Cabral, inconsequência do ex-prefeito Eduardo Paes, incompetência de Pezão e descaso de Crivella chegou acrescida da violência. Insuportável para uma cidade maravilhosa, que trocou encantos por trancos mil.
BÁLSAMO. Com o adeus da reforma da previdência, proximidade das eleições e possibilidade de brecar a votação da Lei da Ficha Limpa, a intervenção federal surge como um bálsamo para autoridades desacreditadas. Pela emergência e falta de planejamento, pode ser um engodo para a população desejosa da volta à tranquilidade experimentada durante a Copa do Mundo e a Olimpíada. Sem milagre e grana curta, o drama atual pode recrudescer. Complexa é a tarefa do general Walter Souza Braga Netto. Tem de organizar um aparelho contaminado pelo crime, ordenar expurgos e conter o tráfico. Sem poder influir na política e nas graves questões sociais de um ambiente urbano corrompido pelo conflito permanente. Oremos.
VANGUARDA. A cidade do Rio do Janeiro foi uma vanguarda política e social brasileira – São Paulo assumiu a primazia. Lançou modas boas e ruins. Favelas e facções fazem parte das piores criações cariocas e disseminaram-se por um país relapso com suas desigualdades. Hoje, a “favelização” dos bairros mais carentes de cidades-polos – Lajeado, por exemplo – estimula a expansão das facções. A degradação aplaina o terreno para a geração do estado paralelo sonhado pelo crime cada vez mais organizado. A intervenção chega acrescida de um caráter pedagógico. Seu problema está no governo pirotécnico, capaz de lançar o Plano Nacional de Segurança Pública, fevereiro de 2017, para logo transformá-lo em factoide.
DISTORÇÃO. Com pouco tempo e nenhuma grandeza, esses líderes em permanente suspeição não estabelecerão uma política de segurança verdadeiramente pública. Mas poderão ampliar o muro da exclusão com o aprofundamento conveniente da distorção do Estado que segrega a sociedade entre “eles” e “nós”.
“A missão de construir uma sociedade justa esbarra na falta de combate à vilania. É a vitória da omissão sobre a missão.”
De O Sujeito da Frase, livro que escrevi e ainda não publiquei