Sobreviventes contam o horror da II Guerra
Horário SEM cache 04:37:47
Horário COM cache 04:37:47

Especial - feridas abertas

Sobreviventes contam o horror da II Guerra

Dia 4 de fevereiro marca a aliança mundial contra a Alemanha nazista. Moradores do Vale testemunharam um dos piores momentos da história mundial contemporânea. A II Guerra Mundial perdurou entre os anos de 1939 e 1945 e provocou a morte de pelo menos 50 milhões de pessoas. Diversos alemães encontraram no Brasil um desafogo para os períodos de barbárie vividos na Europa. Entre eles, Meinke Salzer, que vive em Lajeado, e Marianne Schulze-Sutthoff, moradora de Santa Clara do Sul, nascida no interior da Alemanha. Meinke, filha de mãe brasileira, nasceu em meio a bombas e destruição. O pai foi convocado por Hitler e atuou no combate como enfermeiro. Foi preso e salvo por um soldado que havia ajudado

Sobreviventes contam o horror da II Guerra
Vale do Taquari

“Frau” Marianne Schulze-Sutthoff vive hoje na pacata rua Carlos Schnorr, bem no centro de Santa Clara do Sul, uma colônia de alemães com pouco mais de 5,6 mil habitantes. Irmã Praxedes, como escolheu ser chamada para homenagear uma santa italiana, mora no Lar Divina Providência, uma casa de repouso para idosos. Antes disso, a professora morou quase 30 anos em Arroio do Meio.

Em Santa Clara, o constante silêncio costuma ser interrompido pelas sinetas que anunciam a troca de turno nas indústrias locais. Barulho suficiente para trazer dolorosas lembranças à irmã. “Eu me arrepio sempre que ouço estes alarmes das empresas. É semelhante aos avisos emitidos pelos alemães em momentos de ataques aéreos.”

Irmã Praxedis vivenciou de perto os horrores da guerra. Ela nasceu em 1924, na pequena cidade de Westkirchen, na Renânia do Norte-Vestfália. Lá, vivia em uma área rural, junto com os pais e as irmãs.

Lembra com detalhes das primeiras movimentações de Adolf Hitler para chegar ao poder, anos depois da derrota alemã na primeira grande guerra mundial, e das dívidas impostas à Alemanha no Tratado de Versalhes, em 1919. Segundo a irmã, o cenário desolador foi propício para o advento do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido como Partido Nazista.

“Nos discursos, falava da falta de liberdade, trabalho e prometia: eu dou liberdade, felicidade, alegria, pão e trabalho. Mas, sem Deus. Naquele ano de 1933, ele já havia feito campos de concentração para presos políticos, que simplesmente eram levados. Sem possibilidade de se defender. Tinha conhecidos que foram.”

Hitler mantinha discursos contra o capitalismo, a democracia, parlamentarismo, marxismo, comunismo, judaísmo, cristianismo, entre outras doutrinas ou religiões.

Apesar deste poder de persuasão e até de “hipnose”, conforme ela mesmo afirma, Irmã Praxedes e a família não acreditavam nas promessas e discursos de Hitler e dos demais líderes nazistas. Entretanto, era melhor não questionar. “Todos que ousavam criticar ou questionar eram mandados para campos de concentração. Muito antes do início da guerra.”

Nos anos entre a posse de Hitler como presidente e chanceler, em 1934, e o início da guerra, em 1939, ações do estado nazista deixavam claras as intenções de tornar a Alemanha uma grande potência. Durante um ano, jovens de 18 anos eram obrigados a trabalhar de graça para o governo. Homens e mulheres.

Eles atuavam, principalmente, na construção de grandes rodovias e dutos. As famosas “autoestradas” alemãs foram construídas neste período. Depois deste um ano de trabalho gratuito, os homens cumpriam mais 12 meses de serviço militar. Nos rádios, Hitler falava sobre planos para “conquistar o mundo”.

Pré-guerra

Irmã Praxedes conta sobre as últimas movimentações e mudanças de rotina antes do início da guerra. Havia um sentimento de apreensão entre os alemães, cuja maioria era contrária a qualquer ação militar contra países vizinhos, afirma. “Ouvíamos pelo rádio que as tropas alemãs estavam se locomovendo rapidamente pelas autoestradas em direção às nossas fronteiras. “

Outro indício de guerra eram as ordens aplicadas pelos nazistas. Entre essas, o racionamento de comida. “A gente podia comprar 800 gramas de carne por mês para toda a família, e 250 gramas de manteiga. E para cada um eram três fatias de pão por dia, um ovo por semana, duas ou três batatas por dia e 800 gramas de açúcar por mês. E sabonete era um por mês. Era só um pedaço de barro com soda e perfume.”

Já naquele período pré-guerra, agentes da Gestapo – a polícia nazista – pareciam estar em todos os cantos. “Não usavam uniforme. A gente fazia compras no mercado e não sabíamos se havia algum por perto. Mas eu tenho certeza que um vizinho que morava próximo a nossa casa era da Gestapo. Todos eram simpáticos a ele, em função do medo. Ele fazia campanha para Hitler.”

“Ouvimos pelo rádio a invasão à Polônia”

A irmã lembra bem o dia 1º de setembro de 1939. Naquela data, as tropas de Hitler invadiram a Polônia. A família dela ouviu tudo pelo rádio. Logo, as forças aliadas do Reino Unido e da França declararam guerra à Alemanha. “Haviam diversos alarmes já instalados para avisar a população alemã sobre possíveis ataques. Eu lembro de ouvir e depois ver os aviões, voando bem baixinho.”

Os próprios moradores foram obrigados a garantir um mínimo de segurança. “Nós colocamos sacos de areia nas portas e janelas, e construímos abrigos nos porões das casas. Mas a melhor forma de evitar de ser atacado era apagando as luzes, ou escondê-las com panos escuros. Pois, onde tinha luz, os aliados bombardeavam.” Muitas casas vizinhas foram atingidas, lembra a irmã.

Pouco tempo depois do início da guerra, Irmã Praxedes foi trabalhar na Cruz Vermelha. Com isto, ficava mais próxima dos horrores causados pelas batalhas. “Vi muitos mortos. E a maioria dos feridos que chegavam até nosso local de atendimento eu já não tinha como ajudar, pois estavam muito machucados”, lamenta.

“Não celebrei a morte de Hitler”

Os anos de guerra foram difíceis. Racionamento de água, desaparecimento de amigos e silêncio absoluto. “Hitler era dominador, ditador horrível, com tremendo poder. Com força hipnótica, conseguiu tudo com fogo, espada e morte. Ninguém tinha direitos humanos. A vida não tinha valor algum.” Passados quase sete anos do início da guerra, em 1945, e já com a Alemanha dominada pelos aliados, veio do rádio uma das notícias mais festejadas no mundo inteiro.

Era 30 de abril. Hitler completara 56 anos dez dias antes. E um tiro contra a própria cabeça encerrava ali, próximo ao bunker onde casou com Eva Braun um dia antes, uma vida de política, golpes e derramamento de sangue. O Chanceler do Reich e Führer da Alemanha Nazista ficou no poder de 1934 até 1945.

“Ouvimos pelo rádio que Hitler teria se suicidado. Não celebrei a morte dele. Sou cristã. Não vou celebrar a morte de um ser humano”, resume. Dias após o anúncio fúnebre, soldados ingleses chegaram até a cidade de Westkirchen, onde ainda enfrentaram uma curta resistência nazista. “Eles entraram na nossa casa, e os chamávamos de ‘nossos libertadores’. Dividi nosso pão com eles.”

“Sonhava em ir à guerra”

Pedro Rossi nasceu em 17 de agosto de 1920, em Ilópolis. Cerca de 22 anos depois, resolveu servir ao Exército Brasileiro no 5º Regimento de Santa Maria. Menos de 12 meses após chegar ao quartel, ficou sabendo da possibilidade de ir à guerra. O ano ainda era 1943 quando ele foi convocado pelo governo de Getúlio Vargas para entrar em combate na Itália. “Sonhava em ir à guerra. E na hora de ir mesmo, não tinha mais como escapar”, brinca.

Rossi aponta para a imagem dele, de 1945, ano em que ele voltou do campo de batalha, pouco antes do fim da grande guerra. Foto: Rodrigo Martini

Em um trem de carga animal, Rossi foi de Santa Maria até a capital gaúcha, dormindo entre vacas. De lá, pegou um voo até o Rio de Janeiro, onde ficou 11 meses treinando para depois embarcar com destino à Europa. Durante esse período de treino, um estilhaço de tiro lhe feriu próximo ao peito. Lá o soldado de Ilópolis se especializou como “apontador” de canhão. “O cara que mirava nos inimigos.” Ao todo, oito soldados manuseavam essa arma bélica.

Rossi estava sempre acompanhado de outros dois soldados da região: um era de Arvorezinha. Eram inseparáveis. “Fomos e voltamos juntos”, orgulha-se. O embarque ocorreu em 1944. Foram cerca de 15 dias navegando entre o Rio de Janeiro e a cidade italiana de Nápoles, no sul da Itália.

A batalha em Monte Castello

No caminho, cruzaram por cidades como Fornacci, em outubro de 1944, Monte Cavallaro, em janeiro de 1945, e chegaram até Monte Castello, em fevereiro daquele ano. Foi lá que Rossi vivenciou a mais intensa batalha dele na Segunda Guerra Mundial, sob um frio de até 15C negativos. Antes disso, o já frágil exército alemão oferecia pouca resistência aos pracinhas e norte-americanos.

A FEB já havia tentado tomar o monte três vezes no fim de 1944, acumulando cerca de 400 mortos e feridos. Na noite de 20 de fevereiro de 1945, a artilharia brasileira bombardeou os alemães. Já no fim da tarde do dia seguinte, sob uma chuva de morteiros nazistas, pracinhas e alemães se enfrentaram em combates corpo a corpo, com submetralhadoras, pistolas e fuzis com baioneta. Às 17h50min, o tenente-coronel, Emílio Rodrigues Franklin, anunciou pelo rádio: “Castelo é nosso!”

Foto de Pedro Rossi, na Itália, próximo a Pisa, em meados de 1945. Foto: Arquivo Pessoal

“Lá no Monte Castello foram dois dias de batalha. Eles não queriam se entregar. Foi preciso um padre interceder. Ele foi falar com os nazistas, explicou que eles iriam se render aos brasileiros para evitar derramamento de sangue. Eles tinham menos medo de se renderem para nós, pois sabiam das colônias alemãs no Brasil e da empatia entre os povos. Havia até nazistas brasileiros que eram de Santa Catarina. Estavam lá estudando quando iniciou a guerra e eles resolveram apoiar Hitler.”

O cidadão de Ilópolis lembra de acompanhar as filas com milhares de alemães passando em frente aos pracinhas e largando as armas como forma de rendição. “Não falavam nada. Apenas caminhavam de cabeça baixa e deixavam o armamento em um mesmo local. Não houve agressões contra os prisioneiros. Também não sei se eu matei algum, pois estávamos sempre na retaguarda, atirando de longe no alvo”, conta.

Foram aproximadamente dez meses em território italiano. A maioria desses só de prontidão. Sem enfrentamentos. Finalizada a participação da FEB na guerra, ele voltou para o interior do estado e nunca mais utilizou armas de fogo.

Antes de retornar ao trabalho em Ilópolis – onde vive até hoje –, atuou durante sete meses no Correios, em Encantado. Recentemente, viajou com os filhos para visitar os locais onde ele batalhou. Essa visita está documentada em um livro na Itália. É de lá, inclusive, que ele mais recebe carinho e homenagens. “O povo italiano até hoje é grato e tem muito mais respeito conosco do que os próprios brasileiros”, lamenta.

Pedro Rossi está com 97 anos e é um dos sobreviventes da guerra. “O brasileiro tem pouco respeito pelo que fizemos”, lamenta.

“Meu pai sofreu com as sequelas da guerra”

Moradora de Lajeado faz mais de uma década, Meinke Salzer, 74, nasceu entre bombas e destruição. Filha de uma brasileira casada com um alemão, a missionária cresceu ouvindo as histórias do pai, que foi enfermeiro durante a guerra. Entre os confrontos testemunhados por ele, a intensa batalha de Stalingrado, na Rússia.

A história da família tem uma pitada de azar. Por pouco, o pai não escapou da batalha. “Ele já vivia no Brasil antes da guerra, e casou com minha mãe. Estavam estabilizados e decidiram viajar para a Alemanha. Passariam seis meses e voltariam. Mas eles viajaram em 1939, cerca de três meses antes de Hitler invadir a Polônia.”

Eugênio, pai de Meinke, não escapou da convocação e deixou a família morando em Pforzheim, cidade no sul da Alemanha. A mãe conseguiu emprego em uma loja de joias e relógios, onde quase todos os colegas eram judeus. “Em um determinado momento, minha mãe contava, os colegas passaram a ser ‘transferidos’. Mas todos sabiam que eles eram enviados aos campos de concentração”, conta.

Meinke nasceu em 1943, enquanto o pai acompanhava o exército nazista perder o combate em Stalingrado. “Meu pai estava sempre no front como enfermeiro. Nessa batalha, eram muitos feridos, e ele também ajudou soldados russos.” Mal sabia que esse gesto seria crucial para ele rever a família.

Já em 1945, ingleses e norte-americanos bombardearam toda a cidade de Pforzheim. “A nossa casa ficou com rachaduras e os vidros quebrados. Em uma noite praticamente todos os moradores morreram. Os aliados queriam se vingar.”

O pós-guerra

Após a rendição, a maioria dos soldados nazistas foi enviada para a Sibéria. Poucos voltaram. Na fila de embarque, porém, um dos russos salvos por Eugênio o reconheceu e avisou os comandantes comunistas: esse não. “Meu pai ficou prisioneiro dos ingleses por dois anos. Eles também atiraram na perna dele. Minha mãe ficou sozinha. Achou que ele estava morto.”

Em 1947, Meinke estava em casa com a mãe quando um sujeito maltrapilho e cheio de feridas chegou. “Era meu pai.” Logo, ajeitaram os papéis e pegaram o primeiro navio – o Santarém – em direção ao Brasil. “Foi uma viagem de três meses, com outros refugiados.”

Hoje, após décadas como missionária no Amazonas, Meinke escolheu Lajeado para se aposentar. Vive em um apartamento no bairro São Cristóvão, repleto de fotos do pai. Ela se emociona. “Não parava de falar da guerra. Eu tinha pesadelos. Ele acabou morrendo cedo. Tinha muitas sequelas do frio da Rússia. Problemas cardíacos, nas mãos e pernas. Sempre reclamava de dores.”

RELEMBRE

1933 – Adolf Hitler inicia no poder defendendo ideias como de superioridade do povo alemão, culpabilização dos judeus pela crise econômica e perseguição, isolamento e eliminação dos mesmos e de outros grupos;

1936 – Hitler e Benito Mussolini, do Partido Fascista da Itália, assinaram um tratado de amizade e colaboração entre os países. Estava formado o Eixo Roma-Berlim, que em 1940 passaria a ser Eixo Roma-Berlim-Tóquio;

1939 – Em março, as tropas de Hitler ocupam Praga, e em 1º de setembro invadem a Polônia. Naquele momento, Reino Unido, França, Canada, Austrália e Nova Zelândia já haviam declarado guerra contra os alemães;

1941 – Alemanha declara guerra à União Soviética. Antes disso, as tropas de Hitler já haviam tomado Holanda, Bélgica, Noruega, Dinamarca e Luxemburgo, e também iniciara ataques contra a Inglaterra;

1945 – Já com os Estados Unidos em guerra com Alemanha, e meses após o “Dia D” – invasão dos aliados pela Normandia, em junho de 1944 –. as tropas soviéticas invadem Berlim e Hitler, encurralado, se suicida em 30 de abril;

Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br

Acompanhe
nossas
redes sociais