A morte e seus mistérios ainda são tabu social. Provocam diferentes reações e opiniões. Para os cristãos, judeus e islâmicos, a ressurreição é a salvação. Quem pecou, e não se redimiu em vida, deverá pagar no inferno. Já os hinduístas acreditam na reencarnação em outros corpos, de pessoas ou animais. Enquanto para os espíritas a morte não existe. A vida continua em outro plano espiritual, ou na terra, com o objetivo de evolução.
Como ainda vivem, os espíritos desencarnados buscariam formas de se comunicar com quem está encarnado, a fim de trazer paz e tranquilidade. Segundo o espiritismo, pessoas, chamadas de médiuns, têm o dom de fazer o intermédio entre os dois planos, seja por meio da fala (psicofonia), vidência ou escrita.
Popularizada por meio de Chico Xavier, a psicografia é uma das mediunidades mais emblemáticas. Calcula-se que no Brasil existam menos de 50 pessoas reconhecidas pelo dom de escrever cartas ditadas por espíritos. Natural de João Pessoa, na Paraíba, Hamilton Junior, 21, seria um deles, capaz de conectar-se a quem já morreu.
Ele esteve na região entre os dias 12 e 16. Passou por Cruzeiro do Sul e Lajeado, e atraiu milhares de pessoas. Em Lajeado, 2,1 mil pessoas destinaram as noites do fim de semana para acompanhar o trabalho. Na cidade de vizinha, pelo menos 1,2 mil pessoas compareceram nos dois dias de reuniões, realizados na segunda e terça-feira, no ginásio da Vila Célia. Para entrar, pedia-se apenas a doação de um quilo de alimento não-perecível – que será doado a famílias carentes. Ninguém precisava fazer cadastro prévio ou sequer preencher ficha de presença na chegada.
À espera de um recado
Muitos estavam ali pela primeira vez. Outros pela quarta, quinta. Acompanhavam Hamilton desde o início das visitas à região, em março do ano passado. Mesmo assim, continuavam ansiosos, à espera, quem sabe, de um “recadinho” de um familiar morto.
A maioria era de outras vertentes religiosas, o que não importava. O principal era fechar os olhos, se concentrar e pedir a Deus uma palavra de consolo. Em pé, ou sentados, inclusive no chão, eles aguardavam pacientemente enquanto o médium se preparava, e transcrevia os ditos, mandados “de lá para cá”, e não o contrário. Segundo Hamilton, a seleção de quem irá mandar as cartas é feita por espíritos superiores.
“Eu renasci para a vida”
Os servidores públicos Vanda Souza da Silva, 56, e Julio César da Silva, 56, estavam na plateia pela quinta vez. Eles tinham andado, pela segundo dia seguido, mais de 60 quilômetros de Taquari a Cruzeiro do Sul na expectativa de receber mais um comunicado do filho “Duda”.
Em maio de 2016, aos 33 anos, o mecânico Eduardo Souza da Silva morreu vítima de câncer. Teve apenas seis meses para se despedir da família, inclusive dos dois filhos, um com 20 dias de vida e outro de 2 anos. “Eu não aceitava a morte dele”, conta Vanda. De família evangélica, ela buscava alternativas para amenizar a dor, e ficou sabendo da primeira reunião de Hamilton no ano passado. Foi a Cruzeiro do Sul, e sentiu que poderia estar no caminho certo. Em agosto, se deslocou pela segunda vez à cidade, e foi agraciada com uma carta. Um ano e três meses após a morte, o filho se comunicava com carinho. Pediu à mãe e ao pai que se acalmassem e aceitassem a condição. Ele estava trabalhando, e escrevia na companhia da avó Neci, falecida há 30 anos. Também pedia sobre os irmãos, e os próprios filhos. Impactada, Vanda chorava e gritava enquanto Hamilton relatava. Não sabia que meses depois outra carta viria. Mais curta, e alegre, feita na companhia dos avós paternos, que o mecânico não havia conhecido. “Eu renasci para a vida. Só eu e ele sabíamos muitas das coisas ditas naquelas cartas. Tenho certeza que era o Duda”, diz Vanda.
No encontro da segunda-feira passada, Duda mandou um recado, dizendo que escreveria no dia seguinte, mas o contato não chegou (ao menos não à plateia). “Acredito que ele deva insistir muito para falar com nós, mas é Deus quem decide. Fico tranquila porque agora sei que a vida dele continua em outro plano. A morte não é mais obscura pra mim, não me assusta.”

Julio César e Vanda, de Taquari, receberam em 2017 duas cartas do filho Duda. As palavras os fizeram renascer para a vida
Carta de Duda para a mãe Vanda e o pai Julio
“Minha mãezona querida, minha mãe valente, minha mãe sempre forte, estou tão feliz em vê-lá aqui hoje. Meu pai maravilhoso. Meu Julio, meu César, meu tudo. Tenho hoje acompanhado com a vovó Neci, que me ajuda a escrever estas linhas para a senhora, procurando consolar seu coração e dizer minha mãe que o câncer não me matou. Quero dizer mãe, que estou muito bem, que a vida continua e que eu não morri. Continuo aquele palhaço de sempre, dando aquelas gargalhadas bem alto, fazendo aquelas brincadeiras, visitando a nossa casa como sempre. Ah, minha mãe, que saudade. É verdade que os nossos planos foram cortados. Como eu queria desfrutar da presença dos meus filhos. Como que tá o Bê, mãe? Como é que tá o Lorenzo? Como está o Renan, o Rafael, como está todo mundo? Que saudade tenho de todos. Mãe, eu venho pedir hoje que não culpe ninguém, não culpe os médicos. Tudo que eles fizeram foi o suficiente. Até hoje eu oro muito pelo doutor Rafael, pedindo que Deus conduza os passos dele. Não foi nada em vão o que a senhora fez. Nada em vão as preces de todos os amigos. Mãe, eu cumpri a minha missão. Temos que entender isso. Deus quis que fosse assim. Temos que aceitar mãe, eu peço que não chore, nem sofra por mim. Temos a consciência agora, mais do que nunca, que a vida é eterna, e que o corpo não morre quando o espírito padece. Pai querido, tenha força paizão, eu sei que sente muito e sofre aí, dentro do seu coração em silêncio. Mas força pai, eu sempre estou do teu lado. O teu filhão que não teria crescido, mas que cresceu, está aqui abraçando vocês. Não sofra não mãezinha, eu te amo muito, muito. Espero que esse amor te abrace neste momento, e que saia daqui crendo que está no caminho certo, no caminho da luz. Minha mãe, as minhas coisas pode doar todas. Estou trabalhando deste lado de cá, sempre crescendo, sempre evoluindo. Por isso, cremos em Deus, que nesse momento permitiu essa comunicação para consolar o seu e o meu coração. Quando a saudade bater, pense em mim com amor, que virei ao seu encontro, e consolarei o teu coração. Agora preciso ir, mas peço que tenha força na caminhada, que não desanime na caminhada, porque estarei contigo em cada passo, em cada lembrança, em cada olhar. Cuide dos meninos, mãe. Vença qualquer coisa, e cuide deles, é o que eu te peço. Amo você pai, amo você mãe, com amor do Duda, do Eduardo de sempre, seu filho, de CPF 001308, o resto não vou dizer.”

Duas reuniões em Cruzeiro do Sul reuniram cerca de 1,2 mil pessoas. Em Lajeado, 2,1 mil compareceram. Esta é a quinta vez que Hamilton vem à região, a convite de uma senhora que recebeu uma carta
Entrevista
“Acho que a nossa missão é esta: ser o melhor de nós mesmos”
Natural de João Pessoa, capital da Paraíba, 21 anos, Hamilton Junior nasceu num lar católico. Aos 13 anos, começou a frequentar a igreja evangélica. Se formou em Teologia e fez seminário presbiteriano. Porém, após algum tempo, passou a não concordar com algumas ideias. Faz quatro anos, entrou no espiritismo e se encontrou. Desde então, a mediunidade começou a aparecer. Primeiro, se tornou médium psicofônico – incorpora espíritos – e cerca de dois anos depois, em abril de 2016, começou a psicografar cartas. Até hoje, já escreveu mais de 600.
A Hora – Como descobriu a mediunidade de psicografia?
Hamilton – Eu estava no centro espírita e de repente senti uma vontade de escrever, peguei papel, caneta e inconsciente comecei a escrever. Quando eu acordei, voltei a mim, tinha um tanto de folhas escritas e era a carta de um pai e de uma mãe para um filho que estava lá presente. Desde então, não parei de desenvolver essa mediunidade. Continue escrevendo, e fiz minha primeira reunião pública de psicografia em dezembro de 2016 no Rio de Janeiro, e continuo até hoje. Todos os meses viajando, de forma gratuita, sem cobrar nada de ninguém. Trabalho de doação ao próximo, levando um pouco de consolo e paz a quem precisa.
Como funciona o processo, interno e externo, para você receber as cartas?
Hamilton – No início ficava inconsciente. Agora fico semiconsciente. Sinto os espíritos se aproximarem e eles tomam 50% do meu cérebro. Eu fico 50% aqui, e 50% não sei onde, talvez num plano superior. Sinto que estou fora do corpo. No momento que os espíritos se aproximam, eu sinto a influência e vou colocando no papel. É simples. Quando termino de escrever não sei o que estão falando ali, apenas digo o nome de quem assinou a carta, o familiar se identifica e nós lemos a carta.
Pessoas que receberam as cartas acreditam no teu trabalho. Ao que atribui isso?
Hamilton – Acredito que seja fruto do modo como ocorre o processo. As pessoas não me passam nenhum tipo de informação, de identidade pessoal, não há nenhuma ficha para preencher. Tudo acontece de forma espontânea. Uma vez que eu não pego informação de ninguém, as pessoas não me conhecem, eu não conheço as pessoas. Não tem como duvidar. Quando os espíritos vem nas mensagens eles deixam detalhes, nomes, fatos, apelidos, números de documentos, coisas para comprovar que são eles, e que a vida continua.
Como mantém essa atividade sem receber, financeiramente, por isso?
Hamilton – Enquanto estudo recebo uma pensão judicial da minha vó. Por enquanto não tenho uma profissão, mas pretendo ser psicólogo e atuar nesta área – estou aguardando o resultado do Enem. Isto que faço hoje não chamo de trabalho. É uma ação de doação ao próximo, atividade voluntária.
Como faz para que ocorra em hora e lugar marcado?
Hamilton – Chego na reunião, faço uma prece com todo mundo, pai nosso ou ave maria. Explico como funciona, sento, me concentro e então recebo os ditados. Toda a carta vem com o propósito de consolar. Trazer paz. Falar para a família que eles estão bem e que não sofram com saudade, porque ninguém morre, e a vida continua. É essa a nossa missão.
De que forma chegou à região?
Hamilton – Já é minha quinta vez aqui em Cruzeiro do Sul. Vim pela primeira vez em março de 2017, depois em maio, agosto, outubro, e agora janeiro e retorno em abril, se Deus quiser. Cheguei aqui por intermédio de uma senhora, que recebeu uma carta do marido, e ela me acompanhava no Facebook e fez o convite para vir ao RS. Na primeira reunião, tínhamos cerca de 30 pessoas. Agora, nas últimas visitas, em Lajeado, por exemplo, reunimos 1,2 mil pessoas, 900 em outra, e aqui em Cruzeiro do Sul mais de 500 pessoas por reunião.
Como se sente em ter esse dom, e transmitir a paz a essas pessoas?
Hamilton – Me sinto às vezes falho, porque queria fazer mais, mas sei que não sou o salvador do mundo. Quando termina cada reunião, vou dormir, faço a autoavaliação do dia, e eu agradeço a Deus pela oportunidade de fazer ao menos uma pessoa sorrir. Se eu conseguir fazer isso, já cumpri minha missão. Acho que a nossa missão é esta: ser o melhor de nós mesmos. Se Deus me escolheu eu não sei, mas que eu escolhi ele tenho certeza. Eu sei que de algum modo eu faço o bem. Não importa se algumas pessoas duvidam, outras perseguem, outras defendem. O importante é dormir com a consciência tranquila.
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Os espíritos conseguem conversar com você por terem um grau superior de evolução?
Hamilton – Eu não tenho como fazer uma seleção, mas os espíritos superiores fazem. Médiuns videntes, que acompanham nosso trabalho, dão toda proteção, organizam os espíritos em fila, selecionam aqueles que irão escrever – eu não vejo nada disso, porque minha mediunidade não inclui vidência. Enfim, tudo é muito organizado, muito mais que aqui. O mundo físico é apenas uma cópia muito mal feita do mundo espiritual. Cada ser humano possui um grau de evolução. Por exemplo, se eu recebo hoje uma mensagem de alguém que foi assassinado, talvez ela não tenha o mesmo grau de evolução diante de uma pessoa que morreu fazendo o bem. Quanto mais elevado, mais traz paz, tranquilidade e harmonia.
Alguma vez não conseguiu psicografar?
Hamilton – Já aconteceu, sim, no meu Centro Espírita, porque não depende de mim. Mas eu lido bem com isso, porque tudo acontece como deve ser, precisamos apenas confiar. Chico Xavier costuma dizer que o telefone toca de lá, para cá. Significando que nós somos apenas uma ponte entre os dois mundos – espiritual e físico. Então esse telefone está conectado com os espíritos. Nós apenas atendemos. Então depende da vontade deles, do nosso pai maior autorizar.
Carolina Chaves da Silva: carolina@jornalahora.inf.br